Clovis Rossi, na Folha de São Paulo (25/11)
Estranho mundo esse que nos toca viver. Comecemos com a descrição feita nesta quinta-feira pelo jornal francês "Le Monde" do "modus vivendi" (e "operandi") dos banqueiros irlandeses até a crise de 2008, que aleijou o país:
"Aos clientes, alguns nem sempre solventes, eram oferecidos empréstimos hipotecários equivalentes a 100% [do valor dos imóveis], às vezes até mais, sem que lhes fosse exigido nem mesmo um hollerit.
À frente dos bancos, uma nova geração de dirigentes megalomaníacos substituiu os banqueiros prudentes de antigamente. A Irlanda era pequena demais para eles; precisavam do Reino Unido, da América, da Ásia. Abriam-se sucursais luxuosas em todos os cantos do globo. Na medida em que a distribuição de gordos dividendos estivesse assegurada, os acionistas nada tinham a dizer sobre as anomalias dos balanços, sobre os prêmios maravilhosos de fim de ano, sobre o modo de vida faustoso dos senhores do dinheiro".
Detalhe nada secundário: essa descrição vale para o modo de vida dos "senhores do dinheiro" em incontáveis outros países.
Aí vem a crise, os bancos quebram, o Estado entra em seu auxílio, fica igualmente quebrado e os senhores do dinheiro saem ao ataque contra a Irlanda, obrigando seus sócios no euro a correrem para socorrê-la.
Nessa altura, surge uma certa Angela Merkel, que vem a ser a chanceler (primeira-ministra) da Alemanha, não pertence nem remotamente à esquerda revolucionária, e sugere que os detentores de títulos dos países em crise com suas dívidas paguem sua parte da conta, no caso de impossibilidade ou dificuldade insanável para que o Tesouro público honre totalmente os papéis.
Está, na prática, insinuando que só um calote, ao menos parcial, põe fim à ciranda da crise em que está envolvida a Europa.
Traduzindo para o português comum e corrente, Merkel está dizendo o seguinte aos corsários da banca: "Vocês ganharam muito dinheiro com os títulos do Tesouro, muito bem remunerados, então é hora de que assumam os riscos".
Perfeito. Politicamente, o que a chanceler está invocando é "a primazia da política sobre os mercados financeiros". De novo, perfeito.
Das palavras aos atos: o governo alemão está para aprovar legislação que permite dividir os custos entre o Tesouro (o dinheiro de todos os cidadãos, na verdade) e os banqueiros.
Se você acha que a avaliação de Merkel mereceu os aplausos devidos por sua sensatez, é um ingênuo irremediável. O que se lê nas melhores publicações ocidentais, de direita, de centro ou até de esquerda, é que ela só agravou a crise irlandesa com suas declarações. Os donos de títulos ficaram assustados e passaram a cobrar ainda mais do que já vinham cobrando, preventivamente.
Seria duplamente escandaloso, portanto, não fosse a anestesia que tomou conta dos governos e da opinião pública. Tanta anestesia que o projeto alemão se de fato vier a ser implementado só valerá a partir de 2016, quando a Irlanda já estiver completamente exangue.
Aliás, podem estar também os outros dois países na mira dos corsários, pela ordem, Portugal e Espanha.
Mas, atenção, se a Espanha entrar na roda, a crise dificilmente será contida nos limites do euro. Sua economia tem o dobro do tamanho das de Grécia, Irlanda e Portugal somadas.
Haverá dinheiro para amparar a Espanha, depois dos pacotes de ajuda à Grécia e à Irlanda e, eventualmente, Portugal?
Não seria mais que justo que saísse pelo menos em parte de quem, como diz Merkel, tanto ganhou na bonança?
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