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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Educação: novos tempos, nova linguagem.

Por Flávio Brayner

Já se disse, muitas vezes, que a consciência sempre anda em atraso em relação à realidade. A conseqüência, talvez, mais imediata desta constatação é que, de ordinário, as estratégias que utilizamos para combater certos aspectos da ”realidade” (a opressão, por exemplo) ficam defasadas: utilizamos armas antigas –e, não raras vezes, inoperantes- para combater novos inimigos com suas insólitas estratégias. Mas a coisa é muito antiga, não é privilégio nosso: o Dom Quixote, após as inúmeras leituras de romances de cavalaria, saiu ao mundo à procura das “coisas” que correspondessem às “palavras” contidas em seus livros. Como um ser anacrônico, pretendia combater o moinho de vento, tecnologia moderna,como se fosse um monstro e isso, com armas... medievais!

A estratégia utilizada pela “dominação” para ocupar os espíritos e desarmá-los, passava pela consciência, ou melhor, pela produção de uma “falsa consciência”, pela ideologia. O remédio para essa estratégia também passava pela consciência: era necessário um trabalho contra-ideológico para combater a dominação ali onde ela se instalava: na alma dos oprimidos. A primeira tarefa era obra da “classe dominante”; a segunda, daquelas consciências intelectuais engajadas e, por um ou outro motivo nem sempre muito claro, interessadas na “libertação” dos oprimidos.

Tenho a impressão de que as coisas já não se passam da mesma maneira!

Com a sociedade do hiperconsumo, promoveu-se um dramático deslocamento moral em que (vou usar inapropriadamente os termos) um “princípio de realidade”, a nossa luta para construir uma realidade de acordo com a razão e com um certo ideal de humanidade, foi substituído por um “princípio de prazer”, em que uma ética do dever cede lugar à uma outra, hedonista, quando procuramos uma espécie de euforia perpétua proporcionada pelo consumo. “Revolução? Que nada: isso dá muito trabalho e termina sempre em sangue e terror, e a felicidade social prometida acaba no Paredón ou no Goulag...” No lugar da fracassada felicidade social, pode-se proporcionar felicidade individual e “a crédito”: “Quer fazer uma ‘revolução’ na sua vida? Nós podemos proporcioná-la em dez vezes sem juros! Aceitamos qualquer cartão”. Lukács, o filósofo húngaro, afirmou certa vez que, em 1917, a grande mobilização/comoção mundial que a revolução russa promoveu, era porque, ali, imaginava-se que o que estava em jogo não era a possibilidade de, na nova sociedade que surgia, se ter um automóvel ou uma casa própria, mas porque havia algo que dizia respeito à construção de um Homem Novo. Hoje, parece cada vez mais difícil convencer, quem quer que seja, de que o “ser” é melhor do que o “ter”.

O que ocorre, portanto, é que o desejo, essa coisa errática e que, quando satisfeita, reabre-se imediatamente em novo desejo e nova frustração, constitui-se no novo alvo da dominação numa sociedade de consumo de massas. A fábrica foi substituída pelo shopping, a produção (trabalhador) pelo consumo (novo cidadão), a educação para a conscientização pela educação para o mercado (de trabalho, de consumo, de informação, etc). A pergunta é inevitável: como combater a manipulação do “desejo” com ações políticas ou pedagógicas?

O problema é que a estratégia da dominação atualizada também é usada pelos nossos governantes ditos “de esquerda”, o que termina por confundir ainda mais as coisas e embaralhar as expectativas e as ações de contestação. Quando um governo distribui computadores entre os professores, oferece prêmios fiduciários de produtividade, um 13° e um 14° salários por cumprimento de metas e, ao mesmo tempo, dificulta a saída de professores para a realização de cursos de pós-graduação é porque já não estamos falando a mesma língua nem vivendo mais no mesmo mundo (como um Quixote desorientado). O argumento é sempre o da “melhoria das condições de trabalho e ensino”, mas o que subjaz a tais iniciativas é outra coisa. Em primeiro lugar, marca-se o fim da idéia -republicana- de serviço público, onde uma certa noção de virtude e consciência do outro eram decisivas, substituída pela de benefício privado –proporcionando “objetos de desejo” a professores cujos salários são impeditivos- caso o serviço seja bem feito. Em segundo lugar, se o princípio liberal da meritocracia –em relação ao sucesso ou fracasso escolar dos alunos- fora fortemente criticado pela ”esquerda”, ele é utilizado pela mesma esquerda em relação, agora, aos professores, em que sucesso e fracasso passam a ser contingência altamente individualizada: “Nós damos as condições para um ensino de qualidade, se você, professor, não as realiza, a culpa é sua”! Essa desqualificação é fortemente acompanhada

Nem preciso dizer, finalmente, que computador e prêmios monetários nas mãos de professor, sem proposta pedagógica clara e consolidada, não o “conecta” a nada, a não ser ao mercado de consumo de idéias, serviços e produtos.

Um terceiro e último ponto, diz respeito à linguagem. George Steiner, o grande crítico cultural anglo-austríaco, mostrava, num ensaio perturbador a respeito do Nazismo, que a primeira coisa que os estados totalitários precisam fazer é uma mudança importante na linguagem, na estrutura semântica e no léxico (e suas incontornáveis “ressignificações”!). Digo isso porque o vocabulário pedagógico que utilizávamos, não faz nem tanto tempo assim, era o da “conscientização”, “libertação”, “criticidade”, “cidadania ativa”... que está sendo abandonado por coisas como “planejamento estratégico”, “metas”, “monitoramento”, “avaliação de resultados”, “empregabilidade”, “apagão profissional”...

A tese é de simples compreensão: como a esquerda “ideológica”, politizada e autoritária não deu muito certo, retomou-se a vertente –igualmente autoritária- da distopia tecnocrática que substitui o governo dos homens pelos homens, e instala o governo dos homens pelas coisas (técnicas, burocracias, planos).

Que tempos!!!

Flávio Brayner é professor da UFPE

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