Por Juliano Medeiros*
As incertezas quanto ao estado de saúde do
presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías, e os desdobramentos dessa situação
para o futuro do processo de transformações por ele iniciado em 1999, são um
fator de preocupação para as forças populares em todo o planeta. Especialmente
na América Latina, onde Chávez subverteu a perversa lógica de subordinação
nacional à que estavam submetidos os países da região, liderando o primeiro
governo comprometido com os interesses nacionais e populares em décadas, a
influência de seu legado é mais fortemente sentido. Não há dúvidas de que
outras experiências surgidas no decorrer da última década são tributárias da
novidade que Chávez simbolizou.
Entre essas experiências, está o governo de Rafael
Correa, no Equador. Foi em meio às incertezas envolvendo o futuro da Revolução
Bolivariana na Venezuela que começou na última semana a campanha eleitoral para
eleger (ou reeleger) o presidente, o vice-presidente e 137 deputados à
Assembleia Nacional equatoriana. Na corrida ao Palácio de Carondelet concorrem
oito candidatos: o atual Presidente, Rafael Correa; o ex-banqueiro Guillermo
Lasso; o ex-presidente Lucio Gutiérrez, deposto por protestos populares em
abril de 2005; o empresário e candidato derrotado por Correa em 2006, Álvaro
Novoa; o pastor evangélico Nelson Zavala; o cientista político liberal Maurício
Rodas; o advogado Norman Wray e o economista e ex-ministro de Minas e Energia
de Corrêa, Alberto Acosta.
As últimas pesquisas apontam amplo favoritismo de
Correa: com 60,6% das intenções de voto e 72% de aprovação a seu governo, o
presidente deve vencer as eleições já no primeiro turno. Guillermo Lasso, em
segundo lugar, tem o apoio de 11,2% dos eleitores, seguido por Lúcio Gutiérrez
(4,5%), Alberto Acosta (3,5%) e Álvaro Novoa (1,8%). Os demais não alcançam 1%.
O que explica tamanho apoio ao atual governo? A
chamada “Revolução Cidadã” iniciada por Rafael Correa consiste num conjunto de
reformas que buscam enfrentar problemas históricos do Equador, como a Dívida
Externa, o controle sobre os recursos naturais estratégicos e medidas sociais
de caráter emergencial para diminuir drasticamente as profundas desigualdades
sociais que marcam o país.
Já início de seu governo, em 2007, Correa criou a
Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público, cuja atribuição foi a
realização da auditoria oficial da dívida pública do país – tanto interna
quanto externa – e seus impactos sociais, ambientais e econômicos. O presidente
determinou a suspensão dos pagamentos dos títulos da dívida externa e submeteu
o relatório final da comissão à justiça nacional e internacional. Após o reconhecimento
de sua validade jurídica, Correa anunciou a proposta de aceitar somente algo
entre 25% e 30% do valor dos títulos da dívida externa comercial. Aqueles
detentores de títulos que não concordassem com a proposta teriam que recorrer à
justiça, apresentando as suas petições contra o Equador. Face às provas
contundentes de ilegalidade da dívida, 95% dos credores aceitaram a proposta.
Depois de confrontado o problema da dívida pública equatoriana, os
investimentos em saúde e educação quadruplicaram, demonstrando a efetividade da
auditoria.
Além disso, os números divulgados num balanço
oficial apresentado pelo governo no final do último ano são realmente
impressionantes. O Equador esperava fechar 2012 com um crescimento do Produto
Interno Bruto de cerca de 5% (contra o crescimento de 1% do Brasil) depois de
ter se situado no ano de 2011 entre os países com maior crescimento em toda a
região. O nível de desemprego caiu no ano passado a uma taxa de 4,2%, a mais
baixa na história do país. Pela primeira vez, a pobreza extrema está em um
dígito (9,4%), o que é praticamente a metade do valor observado no início do
governo de Correa, quando 16,9% da população estava na miséria absoluta. A essa
política soma-se a eliminação do trabalho infantil, que retirou mais de 450 mil
meninos e meninas dessa situação nos últimos cinco anos. Isto foi reconhecido
pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) quando colocou o
Equador como um dos campeões na redução da pobreza em 2011, assim como na
atenção a mais de 130 mil pessoas com deficiências. Essas iniciativas vêm
acompanhadas de medidas assistenciais a idosos e apoio a mães solteiras chefes
de famílias, mediante o chamado “Bônus de Desenvolvimento Humano” outorgado a
cerca de 1,8 milhões de beneficiários. Parecido com a Bolsa Família brasileira,
esse bônus é entregue sob a condição de que as mães enviem seus filhos à escola
e garantam seu adequado crescimento através de programas de alimentação
infantil para evitar a subnutrição crítica.
Paralelamente, o governo toma iniciativas no
sentido de enfrentar a atual correlação de forças, tanto na política externa –
rompendo relações com o governo da Colômbia quando dos ataques ao acampamento
das FARC na fronteira com o Equador ou asilando Julian Assange em defesa da
liberdade de informação – quanto interna, aprovando uma Constituição que prevê
a institucionalização de vários avanços, submetida e aprovada em referendo
popular por mais de 82% dos equatorianos.
Porém, nem só de acertos vive a Revolução
Cidadã. Uma tensão latente opõe governo e movimentos sociais indígenas e
urbanos. A implementação de um modelo de desenvolvimento cada vez mais centrado
na exploração dos recursos naturais tem sido questionado, principalmente, por
setores progressistas que até pouco tempo apoiavam o governo.
Com investimentos milionários em oito
centrais hidroelétricas, o Equador pretende deixar de importar eletricidade da
Colômbia e do Peru a partir de 2016. Além disso, com um mega projeto de U$12
bilhões na Refinaria do Pacífico, também quer exportar derivados de petróleo.
Mas os planos oficiais de extração de recursos naturais têm contado com a
oposição do principal movimento social do país: o movimento indígena. O novo
processo de licitação internacional para a exploração do petróleo em larga
escala na Amazônia equatoriana tem sido fortemente questionado. Não é primeira
nem a mais importante polêmica entre Correa e os movimentos sociais.
Em março, os conflitos envolvendo os
megaprojetos de mineração anunciados pelo governo equatoriano aprofundaram a
ruptura entre Correa e parte do movimento indígena. Naquele mês, o governo
inaugurou a mina a céu aberto “Progresso”, firmando o primeiro contrato com a
empresa Ecsa para sua exploração. O início das atividades da mina se deu após
intensos protestos e sob a acusação do governo não ter consultado previamente
as comunidades afetadas. A resposta veio dias depois, com a grande Marcha pela
Água, a Vida e a Dignidade, que percorreu o país desde o sul da Amazônia
equatoriana, passando pelas principais cidades andinas até chegar a Quito,
colocando em evidencia o tema da defesa da natureza e da soberania nacional.
Mais recentemente, o enfrentamento entre o
governo e os movimentos sociais tem sido em torno da recente licitação para que
empresas estrangeiras façam investimentos em 13 campos de petróleo no sudeste
da Amazônia equatoriana. Irritado, Correa afirmou: "Basta desse
infantilismo de 'não ao petróleo', 'não à mineração'(...)", defendendo o
"aproveitamento responsável" dos recursos naturais não renováveis que
o país possui”. No centro da polêmica, está a disposição da Constituição
equatoriana que estabelece que toda a decisão do Estado que afete o ambiente
terá que ser objeto de consulta com a comunidade local.
Correa defende que tal consulta não
significaria consentimento prévio. Segundo ele, “não podemos ser mendigos
sentados sobre um saco de ouro”, disse em várias ocasiões aos que se opõe à
exploração mineira, quando já há evidências de grandes reservas de cobre, ouro
e outros minerais a serem exploradas. Questionando os que criticam as
iniciativas na área da exploração mineral, o governo afirma que os maiores
depredadores são a expansão da fronteira agrícola e a mineração clandestina
irresponsável.
Mas as críticas dos movimentos sociais não se
resumem à questão ambiental. Em agosto de 2012, Correa defendeu a urgência de
reformar a Constituição para sanear, segundo ele, o “hipergarantismo” que
impede a governabilidade do país. Os movimentos questionam como uma
Constituição considerada uma das mais avançadas em termos de direitos possa ser
considerada um empecilho exatamente por assegurar garantias e direitos nunca
antes previstos.
Ao mesmo tempo, há temas importantes que o
governo nunca enfrentou. A ausência de uma reforma agrária, o problema da
distribuição da água ou a democratização dos meios de comunicação são temas
pendentes na agenda de Correa. Além disso, a economia continua dolarizada e o
país segue subordinado às determinações do Federal Reserve, o Banco
Central dos EUA.
É desse processo de crítica ao modelo de
desenvolvimento levado à cabo pelo atual governo que nasce a candidatura de
Alberto Acosta, ex-ministro de Minas e Energia de Rafael Correa e principal
candidato à esquerda da coalizão Alianza País. Representando uma
coalizão de movimentos sociais e partidos socialistas e comunistas unidos na
“Unidade Plurinacional das Esquerdas”, a candidatura de Acosta simboliza não
somente uma justa crítica aos limites do governo de Correa, mas uma plataforma
efetivamente mais avançada para transformar profundamente a realidade do
Equador. Com menos de 4% de apoio, porém, as pesquisas demonstram que a
sociedade equatoriana não está preparada para uma saída radical aos séculos de
atraso a que foi historicamente submetida. Razão pela qual, Correa deve mesmo
capitalizar a grande maioria do apoio dos setores populares e progressistas.
Nos vinte anos que antecederam a chegada de
Rafael Correa ao poder, nada menos que 14 presidentes haviam sido depostos
(média de cerca de um presidente a cada ano e meio). A estabilidade política é
uma conquista das elites que hoje podem negociar livremente, mas também é um
avanço que favorece as forças populares na organização de um projeto
efetivamente alternativo. O problema é onde entram Correa e sua “Revolução Cidadã”
nisso tudo. Longe de ser uma experiência a serviço da “estabilização burguesa”
como acusam os setores mais extremados da opositora Unidade Plurinacional das
Esquerdas, o processo liderado por Correa é cheio de contradições e limites,
embora mostre muito mais disposição para enfrentar os problemas históricos de
seu país em comparação com outros governos da região. Pressionado entre “razões
de Estado” que a legalidade burguesa impõe e a necessidade de rupturas, Correa
se equilibra, ora acertando, ora errando. Faz um bom governo, bem posicionado
na geopolítica regional e com inquestionáveis avanços sociais.
Mas para ele, tal como para os demais
governantes que representam experiências democráticas e populares, o dilema é o
mesmo: até onde é possível ir sem romper com os limites dessa legalidade? Como
construir uma alternativa real de poder popular? Que fazer para fortalecer as
organizações da sociedade civil? Se Correa não tiver em seu horizonte a
necessidade de enfrentar essas questões, de pouco terá servido chegar até aqui.
*Historiador, dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE) do Brasil, nas gestões 2005-2007 e 2007-2009. É editor do site Unamérica.
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