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terça-feira, 13 de agosto de 2013

Sobre a esquerda, a direita e o neo-PT

Por Edilson Silva

Dia desses o ex-presidente estadual do PT, Dilson Peixoto, figura de proa deste partido, disse em entrevista a uma rádio local que o PSOL não era um partido de esquerda, mas tão somente de oposição. Sustentou o delírio afirmando que o PSOL sempre se somava à direita em votações nos parlamentos. O delírio se mostrou profundo quando afirmou também que o PT é um partido genuinamente de esquerda. Talvez fosse mais adequado chamá-lo de “genoinamente” de esquerda.

As direções do PT e seus satélites partidários que se intitulam de esquerda fazem uma propaganda sistemática sobre uma suposta não natureza de esquerda do PSOL. Os pseudocritérios utilizados pelos dirigentes petistas são de ordem meramente retórica, um claro charlatanismo. Dividem o mundo da política em dois lados: os que estão com eles – estejam onde estiver, nem que seja no banco dos réus do Mensalão - são de esquerda; e os que estão do outro lado são de direita.

Misturam malandramente – por ignorância ou apostando na ignorância alheia – o que é ser de esquerda, anticapitalista, classista ou de oposição. Ora, um partido pode ser de oposição a um governo e ao mesmo tempo ser embasado socialmente numa classe empresarial ou na classe trabalhadora; defender economicamente o liberalismo ou defender teses anticapitalistas. A condição de oposição ou situação, pura e simplesmente, não define critérios de classe, tão pouco de esquerda ou direita.

A Esquerda – que é um conceito meio fluido no senso comum - é uma categoria essencialmente política e não necessariamente social. A burguesia era de esquerda e revolucionária nas lutas que culminaram com a Revolução Francesa. O conceito de esquerda e direita vem de lá, inclusive. Nos primeiros parlamentos que minavam o poder da monarquia francesa, os que queriam mudar a sociedade, fazê-la avançar contra os privilégios da nobreza e do clero, sentavam-se à esquerda do Rei. Os que queriam conservar a sociedade com os privilégios para poucos, sentavam-se à direita do Rei. Os de esquerda eram os progressistas e revolucionários, contestadores do poder e do regime. Os de direita, os conservadores e reacionários.

O PT no poder perdeu grandes chances de se posicionar a esquerda do “Rei”. Onde está o PT na luta contra a imoral e ilegal dívida pública que enriquece ainda mais os banqueiros em detrimento das demandas mais caras do povo, como saúde e educação? À direita. Onde está o PT no poder no combate à máfia das empreiteiras que sangram o orçamento público e do BNDES? À direita. Onde está no combate ao latifúndio e em favor da reforma agrária que dê dignidade às populações campesinas? À direita. Onde está na democratização das comunicações? À direita.

Mas o PT no poder tem uma pauta ideológica de esquerda! E pra que serve ideologia se não se confirma em programa e políticas públicas efetivas? Cria espaços de promoção da cidadania LGBT, das mulheres, dos negros, dos direitos humanos, mas faz acordo com o Vaticano para ensinar seus dogmas no serviço público de educação e dá a comissão de Direitos Humanos da Câmara para os fundamentalistas neopentecostais, enquanto os espaços de promoção de cidadania das populações historicamente oprimidas não tem orçamento para trabalhar e servem mais para promover pessoalmente lideranças facilmente cooptadas. À direita, de novo.

O PSOL e seus parlamentares então não podem votar a favor de um salário mínimo maior que aquele encaminhado pelo governo do PT, só porque o DEM e o PSDB – oportunistamente – apresentaram uma proposta de salário mínimo maior? Neste caso, não é o PSOL que está à direita, mas o PT no poder que está mais à direita que a direita clássica e assumida. Chega a ser constrangedor.

Na semana passada, outro episódio marcou esta sina do PT de se achar o “Marco Zero” da esquerda. Estudantes e populares que compõe a Frente de Luta pelo Transporte Público acompanhavam uma audiência pública na Câmara de Vereadores do Recife, convocada por um vereador “de direita”. Em meio à audiência, por conta da truculência da polícia que estava do lado de fora reprimindo outros jovens, decidiram ocupar a Câmara. Exigiam a abertura de uma CPI e a aprovação do Passe Livre, além da soltura dos presos.

A CPI precisava de 13 assinaturas para ser instalada. Os quatro vereadores da oposição – de direita - prontificaram-se a assinar. Dos 5 vereadores do PT, Jurandir Liberal, Luís Eustáquio, Jairo Brito, Henrique Leite e Osmar Ricardo, apenas este último se dignou a ficar na Câmara com os ocupantes e disse que assinaria o requerimento da CPI. Os demais desapareceram. O PSOL estava lá, inteiro, com seus militantes e este que vos escreve, resistindo com a juventude. Onde estava o PT, tão de esquerda?

O PT ainda tem tempo de assinar o requerimento e mostrar que não teme desagradar as empresas de transporte coletivo que se favorecem da concessão do transporte público em nossa cidade. Ainda tem tempo de mostrar que, ao menos no âmbito municipal, não está tão à direita, pois o que separa esquerda de direita são critérios programáticos e práticos e não meramente ideológicos e retóricos.

Presidente do PSOL-PE

quarta-feira, 31 de julho de 2013

IV Congresso do PSOL - "Resignificar o socialismo e reconciliá-lo com a liberdade: tarefa inadiável do PSOL"

Amig@s, iniciamos esta semana o IV Congresso Nacional do PSOL. Os congressos do PSOL são momentos de grande debate de ideias, onde são inscritas teses mais globais e contribuições mais pontuais. Um coletivo interno (Somos PSOL) e independentes inscreveram esta contribuição pontual abaixo. Aos que têm interesse em acompanhar os debates internos, eis aqui um pouco do que estamos nos propondo. Abaixo estão subscrevendo apenas os primeiros signatários dirigentes nacionais, mas há centenas de filiados de vários estados do país apoiando e subscrevendo também. Quem quiser subscrever, é só deixar os dados nos comentários que a gente absorve. Boa leitura!

Os que apresentamos esta contribuição ao IV CONPSOL são militantes do coletivo nacional “SOMOS PSOL” e também militantes independentes. Em sua grande maioria compomos nacionalmente também o esforço para a apresentação da tese “Unidade Socialista Por Um PSOL Popular”, mas entendemos ser muito importante pautar separadamente os aspectos que levantamos aqui, pois se trata de temas que devem extrapolar os limites da camisa de força que amarra nosso partido em disputas internas.

A esquerda socialista, no Brasil e no mundo, vive uma longa crise de paradigmas. Esta crise remonta à década de 1960 pelo menos, quando o socialismo apresentava ao mundo de forma mais explícita uma face divorciada da liberdade e da democracia, gerando rupturas e busca de caminhos alternativos ou renovados, numa espécie de diáspora dos socialistas.

Com o advento da queda do Muro de Berlim e dos demais regimes do “socialismo real” no final dos anos 1980 e início dos 90, a crise do socialismo ganharia os ingredientes de sua aparente falência também enquanto possibilidade de organização econômica. Vamos adentrando, portanto, em quase três décadas ao menos em que os socialistas não fazem mais que oferecer uma heroica e indispensável resistência às brutalidades do capitalismo e sua crise estrutural e sempre reciclada.

Mesmo as experiências políticas contra-hegemônicas exitosas neste século XXI, como na América do Sul, apresentam-se mais como enfrentamentos anti-imperialistas e de defesa das soberanias destas nações do que como formações econômicas e sociais de caráter socialista, no sentido do estabelecimento de relações sociais de produção que ao mesmo tempo satisfaçam as necessidades elementares de suas populações e também desencadeiem um tal desenvolvimento das suas forças produtivas que tornem seus povos libertos e estas nações em economias superiores em produtividade e qualidade em relação aos centros imperialistas. Em suma, mesmo nestes países, a economia de mercado é hegemônica e estes se mantêm num limitado espaço de autonomia que não deixa de ser ainda um cativeiro da economia capitalista global.

A China, que alguns podem ver como nação fora do eixo imperialista e que desenvolve forças produtivas de forma mesmo a competir com o grande capital privado, parece nos remeter às primeiras críticas a um suposto socialismo sem liberdade, lá da metade do século passado. O que mudou foi a maior integração desta nação ao mercado mundial usando como um de seus diferenciais de competitividade exatamente a limitação da liberdade de seu povo, que garante uma exploração brutal de mais-valia, inclusive exportando para outros países este nefasto modus operandi.

Frente ao que se observa empiricamente, os socialistas intelectualmente honestos estariam condenados a uma pregação ideológica de caráter meramente utópica - tanto mais radicalizada a pregação, quanto mais distante a perspectiva de poder real -, ou a uma ação anticapitalista de caráter meramente analgésica, que poderá nos levar inexoravelmente e unicamente a duas situações: uma desmoralização mais rápida ou mais lenta dos que governam em nome do socialismo, reanimando no imaginário popular e na propaganda pró-capitalista a vitaliciedade histórica do capitalismo e a necessária resignação da humanidade aos seus caprichos.

É esta situação de falta de vigor teórico e de incertezas de caminhos para o socialismo que estamos nos propondo a pautar neste IV CONPSOL. E pautar este tema não significa querer exauri-lo neste congresso – tarefa impossível -, mas colocar o tema na pauta do partido, como problema de primeira magnitude a ser debatido, não apenas numa hermética perspectiva teórica, mas como base fundamental para a nossa atuação política. Qual o socialismo do PSOL? Sem responder a esta pergunta, como podemos falar em programa democrático e popular ou programa de transição para o Brasil? Transição para onde?

O PSOL, em meio a todas as tarefas que temos no nosso cotidiano, não pode se deixar engolir por inteiro neste cotidiano, viver somente disputando congressos e hegemonias internas, eleições, passeatas, greves, lutas, etc., como que esperando que situações objetivas ejetassem as elites do poder para que alguns ungidos ocupem este espaço para governar com o povo e para o povo.

Ou fazemos um esforço concreto e consciente para elevar este problema da atualização do socialismo ao patamar de problema também do nosso cotidiano militante, ou sequer vamos conseguir unidade interna para disputar até eleições em pequenos sindicatos, que é o que tem ocorrido. Sem fazer este esforço, nosso partido continuará sendo vertebrado no imaginário popular apenas a partir de suas figuras públicas, cada qual com seu socialismo particular, ou não, na cabeça. Sem este esforço, continuaremos sem exercitar um amplo processo interno de formação política de nossos quadros e jovens. Sem teorização revolucionária, não há prática revolucionária e muito menos partido transformador da realidade.

Para além do diagnóstico da crise de paradigmas da esquerda socialista e das práticas insuficientes do nosso partido no sentido de atuar sobre esta demanda, sugerimos nesta contribuição caminhos metodológicos e hipóteses teóricas para iniciarmos no PSOL uma discussão sobre questões estratégicas do socialismo.

Do ponto de vista metodológico, sugerimos que o PSOL estabeleça uma Tribuna Permanente de debates sobre a atualidade do socialismo no século XXI, de forma que possamos construir uma dinâmica de acumulação teórica e de estudos coletivos e colaborativos sobre esta temática, que possa subsidiar nossas elaborações e análises de mais curto prazo.

Sugerimos, ainda, que o partido envide esforços, sobretudo, no sentido da reflexão sobre as novas dinâmicas sociais a partir das redes sociais, buscando compreender e apreender coletivamente as alterações que daí podem advir ou estão advindo para o terreno da infraestrutura social, na estrutura econômica e na superestrutura social.

Sugerimos também explorar num debate interno organizado a hipótese de que estamos vivendo um momento histórico de transição do capitalismo da Era Industrial, que foi baseada na geração de energia a partir de combustíveis fósseis, na economia de alto carbono, na fraude da financeirização da economia, num mundo sensorial analógico e refém de relações sociais hierárquicas verticalizadas. Estaríamos transitando objetivamente para uma outra Era, onde condições históricas estariam se conjugando e construindo uma sociedade pós-industrial: a Era da Informação.

Nesta nova Era, que estaria em pleno desenvolvimento, a internet e sua arquitetura interna - em sua versão de uso 2.0 -, seria uma nova geografia, digitalizada, que permitiria aos seres humanos uma experiência sensorial intersubjetiva única e revolucionária na história da humanidade, não só pela desalienação social e política que pode estar gerando, com suas consequentes alterações na consciência social, mas também porque permitiria uma nova organização/divisão mundial da produção: horizontal, colaborativa e solidária, muito superior em qualidade e produtividade ao capitalismo. Ao invés de linhas de produção, redes de produção. Ao invés de verticalidade na divisão funcional do trabalho, horizontalidade na incorporação de trabalho humano na produção do bem mais valioso nesta nova Era: o conhecimento.

O Capitalismo, especulamos, estaria em plena construção de sua nova faceta hegemonia: o Capitalismo Informacional, em que se pretenderia um novo e histórico ciclo de acumulação capitalista. Essa estratégia, no entanto, enfrentaria dois inconvenientes de difícil superação. O primeiro é a busca da desconexão da infraestrutura social analógico/presencial da nova infraestrutura social digital/virtual, no sentido de que as demandas da sociedade represadas na primeira não serão objeto de preocupação e construção de solução por parte da segunda. Esta estratégia descartaria completamente qualquer possibilidade de mínima democracia na realidade presencial neste século XXI.

O outro inconveniente estaria nas regras a serem impostas nas relações sociais de produção na internet, que atingiu um ponto tal de desenvolvimento nas relações internas que tornou obsoleta, inconveniente e parasitária a presença de servidores/intermediários para a realização de contato entre os sujeitos que querem e precisam se conectar.
Portanto, a liberdade e a privacidade alcançadas na Internet atentam contra os interesses do Capitalismo Informacional, que precisa de uma “indústria de intermediação” para manter a propriedade privada dos meios de produção e seguir seu plano de um novo ciclo de acumulação, como, por exemplo, nas pesquisas da área médica e de produção de tecnologias para uso da energia limpa e do hidrogênio, o que se choca com o resultado da produção do conhecimento como propriedade social e não privada, quando se trabalha em copyleft, open source, sem patentes, com conteúdos Commons.
A Indústria da Intermediação precisaria do fim da liberdade e da privacidade na internet, pois disto dependeria a manutenção da propriedade privada dos meios de produção e a garantia de algum nível de alienação e de realização de trabalho abstrato neste novo mundo do trabalho, garantindo assim a manutenção do produto do trabalho coletivo como mercadorias com valor de troca num mercado ainda capitalista, ao invés de valor de uso individual e coletivo de uma propriedade colaborativamente produzida e colocada à disposição da sociedade como propriedade social.

Não estaríamos, portanto, diante da hipótese de que existe uma luta anti-imperialista e anticapitalista de caráter quase definitivo diante de nós, em que temos que refletir se o sujeito da revolução, o proletariado do conhecimento, não está neste exato momento digladiando-se contra a CIA e outras agências de inteligência e espionagem e as grandes indústrias capitalistas da intermediação que tramam jogar para os países “emergentes” a sua sucata industrial, como grandes montadoras e outras plantas industriais que geram apenas uma mais-valia residual na atualidade, enquanto nós, socialistas, desatentos a estes fatos, estamos lutando apenas pelos escombros e pela sucata do velho capitalismo já descartado como perspectiva de futuro pela própria elite do capitalismo?
Convidamos os filiados e filiadas a subscreverem conosco esta contribuição. Não necessariamente em concordância com as hipóteses aqui levantadas, mas por entenderem, como nós, que nosso partido precisa urgentemente fazer este debate, começar a tirar conclusões, colocar-se na vanguarda de uma batalha teórica, mobilizando nossa intelectualidade militante para além dos muros das universidades, formando nossos quadros para a defesa profunda do socialismo e da liberdade, fazendo refletir esta acumulação em nossa retórica, em nossos programas eleitorais, em nossa prática cotidiana para mobilizações populares não só anticapitalistas, mas pós-capitalistas e vigorosamente socialistas.

Edilson Silva – Secretário Geral do PSOL / Presidente do PSOL PE
Ronaldo Santos – Executiva Nacional do PSOL / Sec. Geral PSOL BA
José Luis Fevereiro – Executiva Nacional do PSOL / Exec. Estadual PSOL RJ
Carlos Leen – Diretório Nacional do PSOL / Dir. Estadual PSOL MA
Tárcio Teixeira – Comissão Nac. Ética do PSOL / Exec. Estadual PSOL PB
Cleide Coutinho - 1ª Vice Pres. PSOL Bahia / Diretório Nacional PSOL
Augusto Romero- Executiva Estadual PSOL BA / Diretório Nacional PSOL
Albanise Pires – Direção Nacional do PSOL / Direção Estadual do PSOL PE
Zé Gomes – Direção Nacional do PSOL / Executiva Estadual do PSOL PE

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Entre Damásios, os mascarados são as vítimas

Por Edilson Silva
 
Estive nos últimos dias envolvido na tentativa de cobrar de algumas instituições uma atitude mais contundente contra a postura policialesca do governo do Estado, comandado pelo Sr. Eduardo Campos. Perseguição nos quarteis contra lideranças das associações de Praças e Oficiais; monitoramento político nas redes sociais de 87 lideranças e pessoas influentes no Estado; aparato policial intimidando lideranças da juventude pessoalmente; prisões arbitrárias, sem fundamento e com procedimentos estranhos à Lei nos seus encaminhamentos, como levar um jovem manifestante para a sede do GOE, uma jovem estudante para a colônia penal Bom Pastor e definição de fianças abusivas; proibição e constrangimento da atividade da advocacia nas dependências de delegacias. Sobram exemplos.
Causou-me estranheza a oposição na ALEPE não ter se levantado à altura contra tais expedientes. Antes de ir à ALEPE, no entanto, fomos à OAB-PE, e esperamos desta algum resultado, pois se trata do zelo pela ordem democrática e do Estado – ao menos liberal! – de Direito.
Hoje, ao dirigir-me à mais uma manifestação, com o rádio ligado numa estação que toca notícias, o secretário de Defesa Social, Wilson Damásio, perguntado sobre os cuidados da segurança pública em relação ao dia de luta, mostrou que as coisas por aqui estão mesmo ao gosto do coronelismo. Ao invés de falar sobre como a segurança pública agiria, dando uma satisfação à população de como o serviço público estava preparado para a situação, o secretário desandou-se a falar sobre a manifestação, valorando-a, e ainda mais, afirmando que já estava na hora destas manifestações acabarem, para que os políticos encaminhassem o que fosse necessário.
De duas, uma. Ou o secretário falou mais do que devia, e então deve ser desautorizado publicamente pelo governador, ou então falou pelo governo e aí precisamos, a sociedade civil e todos os setores democráticos, exigir uma autocrítica do governo. E é o secretário de Segurança Pública que trata publicamente das questões da democracia e do direito à livre manifestação neste governo?
Ainda impactado por tal fato desconcertante, deparei-me com um mal estar na concentração do ato, por conta da presença de pessoas usando máscaras ou cobrindo o rosto com camisetas. Tenho sérias observações a fazer sobre esta prática nos protestos, mas percebi claramente que muita gente da juventude está com medo e não quer ser “fichada” informalmente pela polícia do governador.
No início da Avenida Conde da Boa Vista, durante a passeata, conseguimos perceber um “fotógrafo” despretensioso, sem identificação, fazendo registros dos rostos de vários jovens. Denunciamos e ele foi constrangido a se retirar. Sua saída resignada foi a certeza da sua função.
A postura truculenta, antidemocrática e policialesca deste governo incentiva os jovens a cobrirem seus rostos. Há ideologia nisto, com certeza. Haveria rostos cobertos sem o incentivo estatal, mas aí então poderíamos tratar disto em outro patamar. Mas, com este governo, temos que entender que cobrir o rosto pode ser uma medida de segurança de quem praticamente nada tem para se defender de um Estado policial.
Presidente do PSOL-PE

domingo, 16 de junho de 2013

Possibilidades pós-capitalistas na infraestrutura digital e quântica, ou como retomamos o socialismo científico pelo método dialético-histórico

Por Edilson Silva*


Introdução
Este texto, apesar do título pretensioso, é apenas uma contribuição ao debate sobre a atualidade do socialismo como estratégia de sociedade, dialogando com os que se veem sem respostas substantivas diante do que se convencionou chamar “crise do socialismo”. Pretendemos circular esta contribuição prioritariamente entre os militantes do PSOL que constroem o agrupamento interno “Somos PSOL”, mas também entre os que conosco militam e compartilham sonhos de mudança na ordem econômica e social, buscando alternativas de longo prazo, teóricas e programáticas. Trata-se de uma continuação, menos descuidada, de um texto também produzido por nós já em 2011, “As digitais de Marx nos vestígios de pós-capitalismo”, em que já especulávamos as hipóteses aqui apresentadas, da impossibilidade objetiva da superação da hegemonia da economia de mercado no século XX e das possibilidades objetivas desta superação a partir das conquistas tecnológicas que permitem a abstração do real no virtual no século XXI e das perspectivas científicas e tecnológicas no universo na física quântica.

Abrimos aqui, como verão os que se dedicarem à leitura, muitas “janelas”. É na verdade uma tempestade de ideias e como tal guarda certamente imprecisões, talvez precipitações, inadequações de categorias, sobretudo pelos limites do autor desta tempestade, que confessadamente não reúne as melhores condições para esta empreitada. Mas a impaciência e a urgência de respostas, aliado às nossas responsabilidades de dirigente e referência política, falaram mais alto, diante talvez de uma também incapacidade nossa de perceber, na produção acadêmica formal, respostas satisfatórias diante das demandas concretas colocadas para o movimento socialista neste início de século.
Há, por óbvio, produção, informação e conhecimentos neste sentido - e é onde tentamos buscar as respostas -, mas parecem estar dispersos, não sistematizados como pensamos ser o mais correto e não se convertendo, portanto, em possibilidade de aplicação como uma teoria eficaz, para a compreensão do que ocorre na luta de classes neste caldeirão pós-moderno e aparentemente pós-ideológico; nem numa perspectiva sincera de gerar a unidade de ação da luta anticapitalista que ainda se dá no plano analógico-macroscópico, com aquela que se desenvolve no plano digital-microscópico. Dinâmicas que se dão, ainda, separadamente.

Logo, é uma extrema ousadia de nossa parte, mas esperamos e estamos abertos à prática da construção colaborativa para aferir o que há de sustentável a ser desenvolvido e o que deve ser abstraído ou corrigido. É um convite à discussão. Fizemos um esforço quase desumano para comprimir ao máximo o texto e garantir a leitura do máximo de interessados em interagir. A ideia é que sirva para a militância concreta. Boa leitura e vamos ao debate!
I – A vitória da hegemonia da economia de mercado no século XX. Um fato histórico.

Em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Max Weber afirma que as tentativas de superação do capitalismo são coisas do jardim de infância da história cultural. A crítica tem um endereço certo: as teses políticas de Marx e o movimento socialista que se avolumava em sua época, sobretudo na Alemanha. Escrito em 1908, o texto de Weber já é um ancião, com seus 105 anos. A história deste pouco mais de século que nos separa, deixou marcas sensíveis de consentimento às palavras de Weber. O capitalismo, como ele o via, é realmente resistente, e talvez mesmo insuperável.

Tento explicar. Weber empresta ao seu capitalismo conceito distinto daquele dado por Marx. O primeiro trata o capitalismo como um impulso humano natural em busca de seus interesses – ação social racional em relação aos fins, ou interesses capitalísticos, quando forem materiais -, presentes desde sempre na história da cultura humana. O segundo trata o capitalismo como um modo de produção historicamente determinado, localizado num encadeamento cronológico-histórico, lógico-dialético, de transformação das formações econômicas e sociais. Visto com mais cuidado e sem paixão ideológica, há a hipótese da convivência entre as ideias dos dois gigantes do pensamento social. O capitalismo a que Marx se refere, um modo de produção de caráter transitório segundo seu método, é aquele que encontrou na ética protestante, segundo Weber, o seu espírito de organização racional numa sociedade/mercado de homens livres, que comercializam sua força de trabalho neste mercado, tornando-se, então, também mercadoria, e sofrendo, portanto, não só um processo de exploração, mas também de alienação, com os respectivos desdobramentos que vamos tratar mais a frente.
O movimento socialista bate-se hoje com os mesmos temas levantados lá naquele início de século passado: o debate sobre as possibilidades de ultrapassagem do capitalismo. Não se trata de debater a necessidade desta ultrapassagem, mas a sua possibilidade. Debatemos hoje, porém, com uma grande desvantagem política: no início do século XX a utopia socialista era uma força social viva e vibrante. Vencido este século, tão intenso, este parece ter dedicado mais atenção ao que aparecia na superfície do pensamento de Weber, com os socialistas nitidamente na defensiva, a ponto de uma relevante articulação de organizações socialistas francesas de caráter mais radical, de forte conteúdo trotskista, há poucos anos ter fundado um novo partido que não se chamava socialista, mas tão somente NPA-Novo Partido Anticapitalista. O que estava explícito e implícito no nome já revelava suas certezas e suas incertezas. No Brasil, o fato do partido de maior repercussão na reorganização da esquerda socialista recente -  Partido Socialismo e Liberdade - precisar adjetivar seu socialismo com o nome liberdade, é também reflexo deste quadro.

Antes de qualquer acusação de anticomunismo, reafirmo que, para o bem e para o mau, ninguém está autorizado a acusar os socialistas e comunistas de não terem enfrentado a fúria de um capitalismo descontrolado, com suas duas grandes guerras, suas crises violentas; de não terem tentado erguer formações econômicas e sociais mais avançadas. Ninguém pode negar o papel de antítese que o comunismo no século XX cumpriu na síntese de um capitalismo ocidental menos incivilizado, de ter feito a maior parte na derrota da maior ameaça à humanidade no século XX, o nazismo. Mas, por outro lado, é muito difícil negar que este comunismo também ensinou, da forma mais traumática, o que não se deve fazer em nome do socialismo: sufocar a democracia e a liberdade. O resultado, ao final de tudo, foi um salto ornamental, por absoluta força de uma espécie de gravidade (para não usar a força de uma mão invisível) de volta ao tablado da economia de mercado, não pela ação de um exército físico invasor, mas pela ação espontânea e decidida de seus próprios povos em luta.
Além disso, as lutas anticolonialistas da segunda metade do século passado tão pouco construíram formações econômicas e sociais que nos deixassem à vontade sem antes termos que fazer uns tantos reparos. A China, além das críticas à falta de liberdade e democracia, está mais que inserida no mercado mundial; na verdade é uma potência cuja solidariedade nas relações econômicas com outras nações está absolutamente ausente e, mais que isto, anima no mercado mundial uma corrida concorrencial que solapa os direitos de trabalhadores em todos os cantos do planeta. A heroica Cuba, também com inegáveis problemas no quesito democracia e liberdade, resistiu o quanto pode, mas se arrasta, com dignidade, à adaptação ao mercado.

As grandes mobilizações antiglobalização do início dos anos 2000, questionando Davos e com seus Fóruns Sociais Mundiais, se limitaram ao debate da ética e solidariedade e outras importantes questões neste terreno, mas nada que se sobrepusesse ao capitalismo e seu mercado (Um outro mundo – capitalista e cheio de ONGs - é possível!). Os países latino-americanos que romperam com o torniquete imperialista já no século XXI, como Venezuela, Bolívia e Equador, para citar os mais badalados pela esquerda, ainda têm suas economias funcionando, mesmo com formas mistas convivendo conjuntamente, dentro do quadrilátero do mercado capitalista. O saudoso Hugo Chaves Frias, talvez o mais preocupado dentre os líderes latino-americanos recentes com a afirmação ideológica de uma ruptura anticapitalista, falava mais em bolivarianismo que em socialismo. As supostas primaveras árabes que sacodem aquela região parecem mais solapar governos fora da ordem ocidental, mas com forte viés autoritário, numa perspectiva mesmo de desorganização daqueles estados e de ocidentalização do seu modo de vida, ou seja, caminham, na melhor das hipóteses – pois há a possibilidade de retrocessos teocráticos - para democracias liberais capitalistas bem comportadas e submissas ao capital internacional.
Em suma, tudo indica que os problemas do socialismo no século XX não estiveram circunscritos apenas às questões do exercício do poder político, mas – e talvez seja esta a lição mais profunda, pois não dependia de condições apenas subjetivas, mas objetivas -, sobretudo, não conseguiram construir uma formação econômica hegemônica com um metabolismo espontâneo de produção e circulação de riquezas baseado na solidariedade, na colaboração e na sustentabilidade, na não-alienação, ou que, de alguma forma, tivesse pelo menos algum embrião de não-desenvolvimento natural da tendência à acumulação e reprodução de capital com base na concorrência predatória. Nenhuma experiência conseguiu erguer uma formação econômica que produzisse riqueza, ou seja, incorporação de valor-trabalho num processo produtivo, com mais qualidade e produtividade que o capitalismo e baseado no trabalho de homens ao menos supostamente livres, repetindo o que foi a dinâmica de superação do feudalismo pelo capitalismo. A economia, neste século, se mostrou um organismo vivo e autônomo, rebelde, não um deus como querem os liberais, mas com regras bem hospedadas no espírito humano sintetizado no curso histórico, algo que se mostrou ainda indomável às pretensões socialistas no século XX.

A impressão que fica é que sobrou aos socialistas apenas uma espécie de vitória moral ou exercício de profissão de fé, onde o lócus da vitória maior, para alguns, não estaria sequer nas nações que ergueram Estados se contrapondo ao capitalismo. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, no final de 2011, um insuspeito Antônio Cândido, parte viva da luta socialista no Brasil, fez as seguintes afirmações, me parecendo expressar bem o sentimento mais honesto: “(...) eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo.(...) Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. (...)” (...) Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia (...)”.
Eduardo Galeano, discorrendo sobre a utopia, num texto que jovens socialistas adoram postar em seus perfis no facebook, parece querer colocar poesia na resignação de Antônio Cândido: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe,  jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Em profundo respeito a Galeano e à poesia que guarda seu texto, melhor não ser tão sincero sobre as múltiplas interpretações e sensações de desconforto que suas palavras ensejam quando tratamos de luta política, de disputa de hegemonia.

David Harvey, intelectual marxista britânico que muito tem influenciado nossas reflexões políticas recentes, não se incomoda em afirmar em suas entrevistas e exposições, após explicar brilhantemente as razões e a dinâmica das crises do capitalismo, que os socialistas marxistas como ele não têm soluções concretas, um modelo alternativo a apresentar a esta situação. Istvan Meszaros, em seu ensaio “O Século XXI: Socialismo ou Barbárie”, publicado em 2001, ensina muito bem o conceito de alienação em Marx, mas resolve se atirar na política e então faz previsões catastrofistas sobre o imperialismo norte-americano que, hoje sabemos, não sobreviveram a uma única década sequer.
Slavoy Zizek, numa de suas obras cujo título sugere caminhos para a superação da crise do socialismo, “Em defesa das causas perdidas”, absolve Stalin – “O Stalinismo revisitado, ou como Stalin salvou a humanidade do homem”, é o subtítulo de um dos capítulos - com o argumento de que aquela experiência “socialista” poderia ter sido muito pior, citando trechos tenebrosos de escritos de Leon Trostky sobre a natureza humana e de Alexey Gastev, um engenheiro e poeta, administrador do Instituto do Trabalho russo, que era obcecado em biomecânica e realizava experiências para que os homens trabalhassem como máquinas e não mais fossem reconhecidos como pessoas, mas como “unidades proletárias”, identificados com números ao invés de nomes. Ou seja, Stalin ainda não foi o pior que o comunismo poderia ter produzido, excluindo, claro, a flagrante patologia do Camboja, que de tão absurda sequer entra na literatura.

Então, estaria a humanidade condenada a tão somente humanizar o capitalismo numa ação política nos limites do anticapitalismo? O capitalismo, já em sua fase senil, destrutiva, abre-alas e pavimentador dos territórios da barbárie social, com sua “destruição criadora”, com suas obsolescências planejadas criminosas, seria ainda assim reformável e administrável? Não estaria mais na pauta dos socialistas a construção de uma formação econômica e social hegemônica em que a solidariedade e a colaboração espontâneas no processo produtivo, com plena liberdade, seriam os pilares para a construção de uma nova consciência social, de um mundo novo? O capitalismo não seria mais um modo de produção transitório, que abriria, ele mesmo, as condições objetivas para o surgimento de outra formação econômica hegemônica, como se depreende naturalmente da aplicação do método marxiano? Este método, então, teria perdido sua aplicabilidade e estaria condenado ao exotismo do mero exercício ideológico no intramuros de meios acadêmicos, transformado em dogma e protegido por instituições e intelectuais bem entrincheirados, somente?
A situação de crise de paradigmas e as respostas que vão sendo dadas por notáveis intelectuais socialistas sobre as saídas (im)possíveis levam outros socialistas honestos e de bom senso -  de envergadura intelectual incomensuravelmente inferior, mas que estão no front das operações políticas de disputa de poder, como é o nosso caso - a fazerem-se as perguntas acima. Estamos, até o limite de nossa compreensão, entre os que entendem o método marxiano como imprescindível para compreender a dinâmica econômica e social no século XXI, dando-nos plenas condições de militar politicamente para mudar o mundo, pois é disto que se trata quando militamos pela estratégia socialista.

Mas pensamos que a resposta honesta a estas perguntas exigirá do movimento socialista admitir a dor de um parto difícil, despir-se de subjetividades meramente ideológicas e apegos românticos ao passado, fazer autocríticas profundas, além de ousar de forma revolucionária nas análises e elaborações políticas. Nas palavras de Leandro Konder, abrindo livro de nome sugestivo de Norberto Bobbio, “Qual socialismo?”: “(...) um processo que passa por autocríticas intranquilizadoras, frequentemente dolorosas (...)”. Konder sugere a entrada de Bobbio no debate para ajudar na elaboração de saídas aos socialistas e nos ensina assim algumas direções a tomar – a principal delas a humildade -, admitindo a profundidade da crise de paradigma dos socialistas.

II – A pertinência prática deste debate

Por mais distante do calor da luta de classes imediata que este debate possa parecer para alguns, ele é de vital importância para o abastecimento do espírito revolucionário daqueles que não travam os combates políticos apenas numa perspectiva de sua consciência imediata. Sem teoria revolucionária, realmente não há prática revolucionária, como afirmava Marx sobre a importância de se ter método científico na luta política. A utopia enquanto algo conscientemente inatingível, um sonho ainda bruto a ser lapidado, tem seu valor é claro, mas, somente assim, é absolutamente insuficiente para que conquistemos corações e mentes rebeldes de todas as gerações para uma causa perene, de toda a vida. É papel dos socialistas dar concretude e viabilidade científica para a nossa utopia, para nossa consciência histórica, sob pena de darmos um salto ao passado, para antes da elaboração por Engels do seu “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, e sermos “elevados” à condição de novos Fouriers e Owens em pleno século XXI. Óbvio que esta situação é menos desconfortável que ser tratado como um “comuna” de estilo militarizado e um tanto desapegado a liberdades demais, mas tudo aí é desconfortável e, pior, improdutivo e desmobilizador, quando não desmoralizante.
Esta falta de firmamento desorganiza a luta política consciente e a capacidade de aglutinação, mesmo que fluida, numa mínima grande narrativa de real transformação social. Na medida em que não se tem um “geral” confiável de onde se parta ou se referencie minimamente para um “particular”, este “particular” de cada um se transforma no “geral” de cada um, uma fragmentação com um atraente viés libertário, é verdade, mas absolutamente dispersa, numa perspectiva puramente individualista. Na militância de esquerda e socialista o resultado é a fragmentação, em nível de torcidas organizadas doentias, e a fragilidade que assistimos. No cidadão comum, mas também mesmo entre segmentos organizados na esquerda, isto descamba não raro numa maratona, a cada dia menos envergonhada, para concorrer competitivamente e predatoriamente no mercado de trabalho, ao gosto do melhor capitalismo senil.

Quem não conhece incontáveis sujeitos com práticas de esquerda, humanistas, lutadores sociais, defensores de causas importantes, mas que se dizem pós-ideológicos: nem de esquerda e nem de direita; voto no candidato, não no partido; partido é tudo igual; a luta dos índios tá justa, mas os sem-terra são um despropósito, etc. Cresce, nas pessoas mais críticas e de espírito mais aberto à defesa de uma sociedade mais justa, um espírito meio anárquico-fisiológico, quando não muito anárquico, como se percebe com mais força nas juventudes. Ou seja, a falta de “janelas” pós-capitalistas suficientemente abertas e perceptíveis como tal pela inteligência humana, acaba por incidir negativamente mesmo na luta mais consciente anticapitalista. A “classe em si”, distancia-se cada vez mais da “classe para si”.

David Harvey já apontava em seu clássico “Condição Pós-moderna” (1989), que a crise do materialismo histórico – já naquela época – e sua incapacidade de compreensão e apreensão política frente à efervescência desta condição pós-moderna, levou a disputa entre a esquerda mais atenta e a direita mais disposta nos anos 1970/80 para o terreno do imaginário, da estética, das imagens e do simbólico, do poder meramente ideológico, sendo que exclusivamente neste terreno os conservadores seriam mais consistentes na defesa de suas posições e nas críticas aos efeitos desta condição no comportamento social, aos excessos dos anos 60, ao maio Francês de 68. As religiões, por exemplo, propõem um início, um meio e um fim para a história, uma utopia “realizável” e até simples de ser entendida e aceita quando se está em meio a um labirinto e sem outra bússola à mão.
Passados vinte e cinco anos da publicação da obra prima de Harvey, a crise do materialismo histórico ampliou-se, a crise do capitalismo também, aprofundando os traços de barbárie, sobretudo no meio urbano, com crises na mobilidade, na moradia, na segurança pública. Os comportamentos supostamente “desviantes” denunciados pelos conservadores lá na década de 1970, só fizeram avançar também. O resultado desta equação no tempo talvez seja o que assistimos hoje com o fortalecimento de segmentos mais conservadores polarizando no ambiente político, sugerindo, no caso do Brasil, pautas de absoluto retrocesso.

Este debate também é fundamental para que sejamos mais equilibrados e responsáveis nas expectativas e nas cobranças em relação a governos de esquerda e de orientação socialista que temos tido ou que virão, e obviamente naquilo que apresentamos à sociedade como propostas a serem implementadas pelos socialistas no poder, principalmente nas questões de ordem econômica. Ter equilíbrio nisto significa não alimentar falsas expectativas que venham a gerar frustrações por absoluta falta de senso de proporção política. Saber quais são os limites físicos da ação de governos socialistas e saber quais são os limites e possibilidades de ação política e no desenvolvimento de condições objetivas de superação da supremacia da lógica do capital na economia é algo da maior relevância e urgência.
Por fim, é fundamental levar este debate adiante e ao seu limite possível para que saibamos nos posicionar com visão mais estratégica nos enfrentamentos ao qual somos convocados, no Brasil e no mundo, e também saber localizar nas pautas das burguesias e seus governos o que é de curto, médio e longo alcance, construindo a nossa pauta de resistência com as devidas hierarquias e prioridades, com bases político-programáticas amparadas cientificamente.

III – Limites do desenvolvimento das forças produtivas na geografia vivida apenas no ambiente analógico-macroscópico do século XX
Frente a esta situação de crise, talvez um caminho a ser explorado seja assumir que o capitalismo realmente conseguiu movimentar-se, adaptar-se e submeter aos seus interesses e à sua dinâmica a plenitude do espaço geográfico no planeta Terra, cujo manejo social no século XX ainda se baseava nas tecnologias analógicas e na física newtoniana. O planeta Terra, sentido e explorado nos limites destas tecnologias, ainda seria demasiado grande, tornando o capitalismo objetivamente invencível pelas forças pós-capitalistas. Os limites impostos por esta geografia, ou seja, desta infraestrutura no conceito marxiano, com estes limites tecnológicos, entraram num tipo de sinergia no processo de produção e circulação de riquezas que acabaram impondo uma espécie de “teto” ao processo de desenvolvimento de formações econômicas e sociais estruturalmente distintas ou superiores. Sair do capitalismo seria similar a um “cachorro tentando morder o próprio rabo”, em velocidade cada vez maior, e perdendo para o cansaço. A questão é esta: o pós-capitalismo então teria sido uma impossibilidade objetiva no século XX? Os limites de nossas possibilidades de experiência sensorial no espaço e no tempo, na geografia como ela se apresentava e se permitia ser sentida e explorada como prática social no século XX, teria imposto à humanidade ter que conviver com o capitalismo, mesmo na mais profunda crise?

É uma hipótese a ser levada seriamente em consideração, caso contrário corremos o risco de apenas fulanizar a história da luta socialista no século XX, como muitos já o fazem, culpando Mao, Stalin, correndo o gravíssimo erro de não tirar daí todos os ensinamentos possíveis e imprescindíveis. Os socialismos reais ou supostamente reais que se debateram e se debatem ainda hoje, heroicamente, corretamente e felizmente, no árido movimento anticapitalista, pelo visto não teriam a capacidade de perfurar este teto, pois no estrito limite da infraestrutura e das relações sociais no espaço e no tempo dela decorrentes, o desenvolvimento das forças produtivas não encontrou magnitude tal que as colocassem em contradição definitiva e incontornável com as relações sociais de produção efetivamente existentes, ou seja, o capitalismo, seu mercado e sua alienação.
Dito a partir de outro ângulo, as forças produtivas desenvolvidas no século XX não permitiram uma compressão tal do espaço-tempo (conceito chave em David Harvey) que tornasse o planeta Terra em algo microscópico, situação que parece ser uma pré-condição para o pós-capitalismo vir à superfície, diante da capacidade de adaptação do modo de produção capitalista a um mundo ainda limitado na prática social cotidiana à proporções macroscópicas. As lutas que vimos empreendendo, imprescindíveis, na verdade sempre teriam sido abastecidas pela subjetividade de honestos lutadores socialistas e do povo, que não exige um protocolo de garantia de saída do modo de produção capitalista para resistir, ao limite, contra as condições degradantes impostas inexoravelmente como subproduto do funcionamento do mercado capitalista cada vez mais predatório e excludente.

IV – O Século XXI e a geografia mundial na era digital-microscópica
Em 1998, durante o governo do socialista Lionel Jospin na França, uma importante jornada de debates, patrocinada pelo seu Ministério da Educação, foi coordenada pelo renomado pensador Edgar Morin. As “Jornadas Temáticas”, como foram idealizadas por Morin, apresentavam “A Religação dos Saberes” como um grande desafio do século XXI – vejam que espetacular ação um governo socialista pode e deve levar adiante.  Foram oito jornadas com renomados pensadores de várias áreas. A sétima jornada, sobre culturas adolescentes, teve como um dos temas Cybercultura e Infoética. Phillipe Quéau, cientista responsável pela problematização da temática, levantou um conjunto de considerações sobre as grandes contradições presentes nesta revolução, sobre seus impactos culturais, sociais, econômicos e políticos. Em meio a muitas interrogações, notem a afirmação: estávamos vivendo uma revolução. Citando as teses do antropólogo francês André Leroi-Gourhan, para quem as grandes etapas da civilização humana foram marcadas por abstrações radicais: o grito abstraiu-se na fala; a mão na ferramenta; o oral no escrito (o que não deixa de dialogar com o método marxiano), Quéau conclui que o real estaria então se abstraindo no virtual neste exato momento histórico, com impactos na civilização que poderiam ser tão transformadores quanto a criação do alfabeto.

O domínio das tecnologias digitais e sua popularização trouxe-nos à internet e a todo um conjunto de ferramentas/aplicativos de comunicação, linguagem, interação, informação e processamento de todos esses conteúdos convertidos em dados matemáticos, informação numérica que pode ser compactada em dispositivos de armazenamento cada vez maiores em memória e menores em tamanho físico ou então na nuvem digital. Com a convergência digital inevitável entre informática e telecomunicações, criou-se assim uma espécie de novo ambiente societário, territórios informacionais, de troca, de trabalho, de lazer, de estudo, de crimes, enfim. A geografia do planeta assumiu uma dimensão, finalmente, microscópica. Neil Armstrong, em 1967, chegou à Lua com um computador de 2 KB (2 mil bytes) de memória RAM. Hoje não é difícil encontrar um telefone celular com 8 GB (8 bilhões de bytes) de memória. A proporção do salto é esta. Os continentes e todos os recantos do planeta já estão conectados à velocidade da luz como uma prática social cotidiana.
A esta revolução somam-se outras. Apenas quinze anos nos separam daquelas pertinentes reflexões de Quéau. As redes sociais deram um salto; as impressões em 3D já são uma realidade. Nos EUA, já há a preocupação por parte da indústria de armas com a impressão de armas de fogo, baixadas pela internet, em ambientes domésticos. Em 2013 foi comemorado o primeiro teletransporte de um corpo macroscópico em distância também macroscópica, feito com sucesso numa associação entre alemães e chineses. Os avanços permanentes na química fina não são menos animadores. A compressão do espaço-tempo no planeta para a interação de dados/pessoas em larga escala na velocidade da luz, aliado a estas tecnologias assessórias, abre hipóteses que podem ir muito além do que possamos imaginar, na cultura em geral, no gerenciamento e fiscalização da gestão pública, no aprimoramento da democracia, enfim. Mas o que nos interessa aqui são os impactos possíveis na economia política, na consciência social a respeito das relações sociais de produção.

V – Movimento das forças produtivas, enfim, em confronto direto com a estrutura econômica do Capital
Acreditamos que aqui esteja o ponto mais difícil deste texto, pois não vamos apenas narrar fatos históricos sistematizados para amparar uma hipótese. Vamos trabalhar sobre o presente e sobre o futuro, tentando utilizar da melhor forma o modo de análise marxiano. Além de mais difícil, também é o mais importante, o “pulo do gato”, o ponto mais alto de todo este debate, pois se localiza neste tópico a questão da alienação do trabalho no modo de produção capitalista nesta nova realidade.

Trabalhamos com a hipótese de que podemos estar vivendo um momento histórico em que a alienação imposta pelo Capital ao Trabalho, o teto imposto à criatividade humana, o estranhamento do Trabalho com aquilo que ele próprio cria, a escravização de sua consciência, ficará à vista como uma fratura exposta, desnudando ao mais simples dos mortais toda a irracionalidade e os truques do capitalismo em sua luta por sobrevivência, todo o seu parasitismo e obsolescência.

Istvan Meszaros nos ajuda a compreender melhor o conceito de alienação em Marx: “(...) o desenvolvimento da divisão funcional – em princípio universalmente aplicável - do trabalho constitui a dimensão horizontal potencialmente libertadora do processo de trabalho do capital. Porém, essa dimensão é inseparável da divisão vertical/hierárquica do trabalho no quadro de estrutura de comando do capital. A função da dimensão vertical é proteger os interesses vitais do sistema assegurando a expansão contínua da extração do sobre trabalho baseada na exploração máxima praticável da totalidade do trabalho. Consequentemente, a força estruturante horizontal só pode se desenvolver até o ponto em que permanece sob o controle firme da dimensão vertical no horizonte reprodutivo do capital. Isso quer dizer que ela só pode seguir sua própria dinâmica até o ponto em que os desenvolvimentos produtivos seguintes permaneçam contidos nos parâmetros dos imperativos do capital. As exigências de controle de ordenação vertical do capital constituem o momento supremo na relação entre as duas dimensões. Mas, ao passo que na fase ascendente do desenvolvimento do sistema as dimensões horizontal e vertical se complementavam por meio de trocas recíprocas relativamente flexíveis, uma vez terminada a fase ascendente, o que antes era momento predominante de um complexo dialético se transforma numa disruptiva unilateral, que traz em si graves limitações ao desenvolvimento produtivo (...)”. Mesmo não observando a importância da compressão do espaço-tempo no movimento das forças produtivas e na produção dialética de uma consciência social que se choque com a dinâmica alienante do Capital, o raciocínio de Meszaros, intérprete das obras de Marx, é de uma precisão metodológica cirúrgica, como esperamos mostrar.
A rede mundial de computadores, a internet, como está amplamente popularizada, se estabelece exatamente numa estrutura vertical, numa relação “cliente <> servidor (máquina central)”. Toda vez que um usuário quiser baixar um arquivo que está na rede, por exemplo, terá que “pedir autorização” para o seu servidor, que obviamente é uma empresa capitalista. O servidor acaba funcionando como uma espécie de pedágio ou posto de fiscalização, que diz o que pode e o que não pode ser disponibilizado gratuitamente e aquilo que só será disponibilizado mediante desembolso financeiro. Qualquer semelhança com uma espécie de feudo medieval encravado na geografia digital, impedindo a passagem do progresso, não é mera coincidência. Esta estrutura vertical torna-se menos produtiva, mais pesada, menos segura e agrega menos qualidade em serviços procurados por clientes/usuários na medida em que já é possível estabelecer-se amplas redes horizontais, mais rápidas, mais leves, mais seguras e, principalmente, totalmente democráticas e dependentes desta democracia.

É o que acontece com a arquitetura P2P (Peer to Peer), ou Ponto a Ponto, uma rede que se sobrepõe horizontalmente à relação vertical, como um viaduto, permitindo que todos os clientes/usuários relacionem-se diretamente uns com os outros, sem servidores. Todos são ao mesmo tempo clientes e servidores, compartilhando tudo, de arquivos a memórias. A colaboração e a solidariedade são as bases da ética aí construída, não há propriedade privada possível, tudo é coletivo, não por uma questão de natureza moral, mas porque assim se agrega mais produtividade e qualidade ao “Commons”, ou “bem comum”, que os levou até ali. Neste universo, ainda embrionário, a sociedade e seus indivíduos livremente associados, querem e podem administrar não a fraude da escassez, mas a abundância daquilo que necessitam. De cada um conforme suas potencialidades, para cada um conforme suas necessidades, com plena liberdade.
Michel Bauwens, criador da Fundação P2P, explica melhor do que se trata, em entrevista concedida ao site Cultura Digital: (...) O commons e o p2p são apenas aspectos diferentes do mesmo fenômeno, o commons é o objeto que a dinâmica p2p está construindo, e o p2p ocorre onde há bens comuns. Lembre-se, eu não uso o termo p2p em um sentido puramente tecnológico, mas em um sentido sociológico, como um tipo de relacionamento (...)” “(...) o movimento p2p tem um papel histórico muito importante a desempenhar, mas que é bastante difícil quantificar isso. Primeiro, o que queremos dizer quando falamos de um movimento p2p? O conjunto de causas subjacentes está ligado à horizontalização das relações humanas que é viabilizada pelas tecnologias p2p, entendida no sentido amplo de permitir a agregação de indivíduos livres em torno de valores compartilhados ou na criação de valor comum. Este é, naturalmente, uma grande mudança social. Poderíamos argumentar que uma emergente vanguarda sócio-cultural está ativamente construindo novas formas de vida, novas práticas sociais e novas instituições humanas (...). Em todo o mundo estamos vendo emergir comunidades que estão desenvolvendo novas práticas sociais que são informadas pelo paradigma p2p. Em um outro nível esta é também uma revolução ética, que registra o crescimento de valores fundamentais tais como abertura (openness, a qualidade de ser aberto) e liberdade em relação às ‘entradas’ (inputs) compartilhadas em processos de produção entre pares; participação e inclusividade como elementos básicos do processo de cooperação; e uma orientação ao ‘commons’ (distribuição universal) na gestão das saídas (outputs) do processo. Economicamente, por exemplo, um estudo recente estimou que o setor de conteúdo aberto nos EUA iria alcançar um sexto do PIB. Finalmente, existem as novas expressões políticas. Eu considero as praças ocupadas na Europa como expressões desta emergente mentalidade p2p. Você poderia dizer que o movimento tem duas alas, uma ala construtiva de pessoas desenvolvendo novos instrumentos e práticas, como, por exemplo, descrito no livro de Chris Carlsson, Nowtopia, e uma ala mais ativa de resistência ao neoliberalismo, que está buscando formular novas maneiras de conceber as mudanças sociais, e que não são cópias carbono das abordagens da velha esquerda. No entanto, é importante ressaltar que este movimento está ainda em uma fase precoce de emergência, e não em nível de paridade com o mundo neoliberal mainstream (...).”.

Chega a impressionar como os termos e projeções visuais usados por Marx e Meszaros são exatamente os mesmos em que se dá a arquitetura do conflito incontornável entre a dimensão horizontal libertária de produção e criatividade e o filtro alienante que impede a progressão, presente na dimensão vertical.
Em nosso sentir, está um curso uma revolução pós-capitalista, ou disruptiva unilateral para usar o termo de Meszaros. Ela não se dá pela via das relações analógico-macroscópicas; não se trata de uma reação de maiorias excluídas, exploradas e oprimidas com força tal para subverter a ordem hegemônica do capital. Sobre isto, a esquerda socialista mundial já viveu melhores momentos e não seria a chegada aos portões da barbárie ou uma suposta crise civilizacional – principalmente por conta da crise ambiental - que geraria uma reação com eficácia. O proletariado revolucionário de Marx migrou das fábricas para a geografia digital.

A revolução pós-capitalista que tratamos aqui, seguindo as leis do materialismo histórico fundado por Marx e Engels, só poderia mesmo ser “anunciada” por um sujeito social cujo interesse maior não é apossar-se do mundo velho, sobreviver nos/dos escombros de um mundo ainda predominantemente analógico na sua face produtiva, mas sim de um mundo novo, que brota naturalmente e dialeticamente de sua atividade laboral, que se vê impedida de progredir pelas forças do atraso do Capital. Esse sujeito, por excelência, tem que ser o mais qualificado, o mais produtivo, o mais criativo, precisa ser o que de mais elevado a cultura sob o capitalismo conseguiu produzir, como previu Marx, de forma que ele próprio se torne portador, porta-voz, artífice e principal defensor deste novo mundo, do futuro, incapaz de conviver com a alienação que o Capital lhe impõe. Aquela nação mais desenvolvida no capitalismo, apta a ser o palco deste teatro revolucionário, é uma aldeia global digitalizada.
VI – A “mão invisível” e o “espírito do capitalismo” migrando para um metabolismo econômico e social colaborativo em redes horizontais.

Adam Smith e Max Weber, sabedores ou não do uso que seria feito de suas produções intelectuais, estão entre os pensadores que mais profundamente alicerçaram ideologicamente o capitalismo e seu mercado. A teoria da “Mão Invisível”, o laissez faire, o “Espírito ‘democrático’ do Capitalismo”, supostos princípios de liberdade e democracia, enfim, sempre se articularam fortemente com o liberalismo econômico. As condições de liberdade e a democracia, supostamente inatas ao ser, confeririam então ao capitalismo uma espécie de status de naturalidade e inclusive de vitaliciedade.

Como se depreende dos tópicos anteriores deste texto, foi esta superestrutura ideológica, sua subjetividade, sua ética, este espírito e este impulso natural em busca da satisfação de interesses, que permitiu ao capitalismo suas metamorfoses e o desenvolvimento sem freios aparentes das forças produtivas e da criatividade humana no século XX; e que deu ao modo de produção capitalista uma autoridade moral e intelectual que se revestiu de hegemonia política - para usar um conceito de Gramsci - até os nossos dias.
Diante das hipóteses que levantamos, como ficam os alicerces lançados por Smith e Weber? Ficam obsoletos e vão perdendo pertinência como acreditamos que vá acontecer com o modo de produção capitalista? Ou deslocam suas linhas de força para outro plano, indo sustentar, moral e intelectualmente, novos metabolismos econômico-sociais, deixando o modo de produção capitalista seminu, desprovido de razão e consequentemente de autoridade?

Parece-nos que a segunda opção é a mais plausível e isto é de absoluta relevância, pois a disputa de poder político é antes de tudo uma disputa por hegemonia, ou seja, pela pacificação de uma maioria ideológica na consciência social, uma hegemonia da liberdade e da democracia, algo muito mais belo e dialogante com nosso tempo do que Ditadura do Proletariado, um conceito mal compreendido e caricaturado, é verdade, mas que nem por isso lhe tira a simbologia de uma carranca assustadora.
VII – Pós-capitalismo é igual a socialismo?

Como afirma Michel Bauwens, do ponto de vista das possibilidades no universo da economia, o real abstraído no virtual ainda é bastante embrionário, mas é absolutamente previsível para os que se utilizam do método marxiano que aí brotam novos burgos, de onde sairão os milionários de uma nova riqueza: o conhecimento, a “polpa” do valor-trabalho, origem primeira da riqueza. A esquerda socialista precisa estudar as dinâmicas deste processo. Parece estar em relevo que este pós-capitalismo conjugará uma formação econômica híbrida, sem hegemonia do capitalismo, claro – o que não significa a extinção desta formação no curto prazo -, mas com cooperativismo/colaboracionismo/solidarismo, formas coletivizadas, formas estatais, anarco-liberais, com muito empreendedorismo individual, pois, até onde nossa abstração alcança, não vemos como haver ricos, detentores de capital, nestas relações sociais de produção, pois não haverá acumulação de capital em massa. Talvez o capitalismo apodrecido por tanto tempo no século XX tenha represado tantas forças produtivas e criatividade que esta hibridez seja uma necessidade objetiva do novo “sistema” que poderá brotar.

VIII – Algumas palavras sobre ativismo quântico
Colocamos propositadamente no título deste texto o termo “infraestrutura quântica”, mesmo sabendo que falaríamos quase nada sobre isto, mas para deixar claro nossa convicção na ortodoxia do método marxiano. Entendemos que os processos analógicos estão para os processos digitais assim como a dimensão da física newtoniana está para a física quântica. Seguindo as leis do movimento, da dialética, é razoável pensar que, assim como as tecnologias analógicas foram superadas pelas digitais, também esta será superada.

Desde o início do século XX a energia quântica ganhou status de ciência. Suas características, porém, escapam ao conceito mais rigoroso de técnica científica como a cultura ocidental a concebe, sendo suas práticas ainda confinadas ao universo do exótico e do alternativo, notadamente na medicina e outras áreas que atuam sobre o corpo humano. Cientistas respeitados no mundo, como o físico nuclear indiano Amit Goswami, tem feito um largo esforço para difundir o ativismo quântico que, grosso modo, contribui de forma extraordinária para diminuir sensivelmente a distância que separa a ciência da fé religiosa, explicando cientificamente fenômenos reais até então inexplicáveis. Este tema e esta dinâmica não podem escapar à atenção dos socialistas, que devem ter em sua prática política o compromisso com o desenvolvimento destes conhecimentos, ainda mais quando se torna cada dia mais previsível que talvez uma das últimas trincheiras do Capital seja exatamente na área das ciências médicas e biomédicas.

IX – O que é o socialismo no século XXI?
O método marxiano não pode servir apenas para constatarmos, a posteriori, que ele é eficaz. Ele deve ser utilizado para orientar a ação do movimento socialista, prevendo o devir. Este é o objetivo supremo da ciência, apreender os fenômenos para que possamos prevê-los e anteciparmo-nos a eles, preparando-nos para recebê-los da melhor forma, ou influindo sobre eles, sobre seus ritmos, sobre seus desdobramentos, ou mesmo evitando que aconteçam, quando for conveniente e necessário ao bem comum.

Como afirmamos na apresentação deste texto, já há alguns anos que estamos observando estes fenômenos e também o fato de haver uma desconexão entre a luta anticapitalista e a luta pós-capitalista. A primeira se dá no campo macroscópico, a segunda no microscópico. A primeira é resistência, é anti, e este é seu limite histórico-geográfico, objetivo; a segunda é superação, é pós, e seu limite hoje são barreiras apenas subjetivas, impostas pelos interesses de lucro do Capital. O desafio da esquerda socialista nesta nova era é saber costurar estas dinâmicas para combater o inimigo comum: a alienação do Capital, que impede que a satisfação plena das necessidades humanas, no mundo analógico e digital, seja alcançada através do exercício da liberdade criativa e sem limites nas relações sociais de produção orientadas pelo bem comum, ou pelo comunismo, como queiram.

Lênin, após o triunfo da Revolução Russa, foi perguntado sobre o que era socialismo para ele. Sua resposta: “Socialismo = Soviets + Eletricidade”. Se nos fosse perguntado o que é o socialismo ou uma proposta socialista hoje, responderíamos: “Socialismo = democracia e liberdade política radical + inclusão digital indiscriminada e horizontalizada em banda larga”. Com um pouco de poesia: “o socialismo é o caminho da desalienação que liberta e nos enche o peito de vontade de viver o futuro”.

*Edilson Silva, 44, é técnico eletromecânico, estudou Economia na UFPE (não graduado), é graduando em Direito e há mais de 20 anos dedica-se ao movimento sindical, como sindicalista e assessor político em várias entidades. É fundador e presidente do PSOL-PE e Secretário Geral Nacional do mesmo partido, sendo candidato a governador de Pernambuco em duas ocasiões, 2006 e 2010, e também à prefeitura do Recife em 2008. Em 2012 foi candidato a vereador do Recife, sendo o 3º mais votado da cidade, não assumindo uma cadeira por deficiência do quociente eleitoral.

 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Possibilidades pós-capitalistas na infraestrutura digital e quântica, ou como retomamos o socialismo científico pelo método dialético-histórico

Por Edilson Silva*

Introdução
Este texto, apesar do título pretensioso, é apenas uma contribuição ao debate sobre a atualidade do socialismo como estratégia de sociedade, dialogando com os que se veem sem respostas substantivas diante do que se convencionou chamar “crise do socialismo”. Pretendemos circular esta contribuição prioritariamente entre os militantes do PSOL que constroem o agrupamento interno “Somos PSOL”, mas também entre os que conosco militam e compartilham sonhos de mudança na ordem econômica e social, buscando alternativas de longo prazo, teóricas e programáticas. Trata-se de uma continuação, menos descuidada, de um texto também produzido por nós já em 2011, “As digitais de Marx nos vestígios de pós-capitalismo”, em que já especulávamos as hipóteses aqui apresentadas, da impossibilidade objetiva da superação da hegemonia da economia de mercado no século XX e das possibilidades objetivas desta superação a partir das conquistas tecnológicas que permitem a abstração do real no virtual no século XXI e das perspectivas científicas e tecnológicas no universo na física quântica.
Abrimos aqui, como verão os que se dedicarem à leitura, muitas “janelas”. É na verdade uma tempestade de ideias e como tal guarda certamente imprecisões, talvez precipitações, inadequações de categorias, sobretudo pelos limites do autor desta tempestade, que confessadamente não reúne as melhores condições para esta empreitada. Mas a impaciência e a urgência de respostas, aliado às nossas responsabilidades de dirigente e referência política, falaram mais alto, diante talvez de uma também incapacidade nossa de perceber, na produção acadêmica formal, respostas satisfatórias diante das demandas concretas colocadas para o movimento socialista neste início de século.
Há, por óbvio, produção, informação e conhecimentos neste sentido - e é onde tentamos buscar as respostas -, mas parecem estar dispersos, não sistematizados como pensamos ser o mais correto e não se convertendo, portanto, em possibilidade de aplicação como uma teoria eficaz, para a compreensão do que ocorre na luta de classes neste caldeirão pós-moderno e aparentemente pós-ideológico; nem numa perspectiva sincera de gerar a unidade de ação da luta anticapitalista que ainda se dá no plano analógico-macroscópico, com aquela que se desenvolve no plano digital-microscópico. Dinâmicas que se dão, ainda, separadamente.
Logo, é uma extrema ousadia de nossa parte, mas esperamos e estamos abertos à prática da construção colaborativa para aferir o que há de sustentável a ser desenvolvido e o que deve ser abstraído ou corrigido. É um convite à discussão. Fizemos um esforço quase desumano para comprimir ao máximo o texto e garantir a leitura do máximo de interessados em interagir. A ideia é que sirva para a militância concreta. Boa leitura e vamos ao debate!
I – A vitória da hegemonia da economia de mercado no século XX. Um fato histórico.
Em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Max Weber afirma que as tentativas de superação do capitalismo são coisas do jardim de infância da história cultural. A crítica tem um endereço certo: as teses políticas de Marx e o movimento socialista que se avolumava em sua época, sobretudo na Alemanha. Escrito em 1908, o texto de Weber já é um ancião, com seus 105 anos. A história deste pouco mais de século que nos separa, deixou marcas sensíveis de consentimento às palavras de Weber. O capitalismo, como ele o via, é realmente resistente, e talvez mesmo insuperável.
Tento explicar. Weber empresta ao seu capitalismo conceito distinto daquele dado por Marx. O primeiro trata o capitalismo como um impulso humano natural em busca de seus interesses – ação social racional em relação aos fins, ou interesses capitalísticos, quando forem materiais -, presentes desde sempre na história da cultura humana. O segundo trata o capitalismo como um modo de produção historicamente determinado, localizado num encadeamento cronológico-histórico, lógico-dialético, de transformação das formações econômicas e sociais. Visto com mais cuidado e sem paixão ideológica, há a hipótese da convivência entre as ideias dos dois gigantes do pensamento social. O capitalismo a que Marx se refere, um modo de produção de caráter transitório segundo seu método, é aquele que encontrou na ética protestante, segundo Weber, o seu espírito de organização racional numa sociedade/mercado de homens livres, que comercializam sua força de trabalho neste mercado, tornando-se, então, também mercadoria, e sofrendo, portanto, não só um processo de exploração, mas também de alienação, com os respectivos desdobramentos que vamos tratar mais a frente.
O movimento socialista bate-se hoje com os mesmos temas levantados lá naquele início de século passado: o debate sobre as possibilidades de ultrapassagem do capitalismo. Não se trata de debater a necessidade desta ultrapassagem, mas a sua possibilidade. Debatemos hoje, porém, com uma grande desvantagem política: no início do século XX a utopia socialista era uma força social viva e vibrante. Vencido este século, tão intenso, este parece ter dedicado mais atenção ao que aparecia na superfície do pensamento de Weber, com os socialistas nitidamente na defensiva, a ponto de uma relevante articulação de organizações socialistas francesas de caráter mais radical, de forte conteúdo trotskista, há poucos anos ter fundado um novo partido que não se chamava socialista, mas tão somente NPA-Novo Partido Anticapitalista. O que estava explícito e implícito no nome já revelava suas certezas e suas incertezas. No Brasil, o fato do partido de maior repercussão na reorganização da esquerda socialista recente, Partido Socialismo e Liberdade, precisar adjetivar seu socialismo com o nome liberdade, é também reflexo deste quadro.
Antes de qualquer acusação de anticomunismo, reafirmo que, para o bem e para o mau, ninguém está autorizado a acusar os socialistas e comunistas de não terem enfrentado a fúria de um capitalismo descontrolado, com suas duas grandes guerras, suas crises violentas; de não terem tentado erguer formações econômicas e sociais mais avançadas. Ninguém pode negar o papel de antítese que o comunismo no século XX cumpriu na síntese de um capitalismo ocidental menos incivilizado, de ter feito a maior parte na derrota da maior ameaça à humanidade no século XX, o nazismo. Mas, por outro lado, é muito difícil negar que este comunismo também ensinou, da forma mais traumática, o que não se deve fazer em nome do socialismo: sufocar a democracia e a liberdade. O resultado, ao final de tudo, foi um salto ornamental, por absoluta força de uma espécie de gravidade (para não usar a força de uma mão invisível) de volta ao tablado da economia de mercado, não pela ação de um exército físico invasor, mas pela ação espontânea e decidida de seus próprios povos em luta.
Além disso, as lutas anticolonialistas da segunda metade do século passado tão pouco construíram formações econômicas e sociais que nos deixassem à vontade sem antes termos que fazer uns tantos reparos. A China, além das críticas à falta de liberdade e democracia, está mais que inserida no mercado mundial; na verdade é uma potência cuja solidariedade nas relações econômicas com outras nações está absolutamente ausente e, mais que isto, anima no mercado mundial uma corrida concorrencial que solapa os direitos de trabalhadores em todos os cantos do planeta. A heroica Cuba, também com inegáveis problemas no quesito democracia e liberdade, resistiu o quanto pode, mas se arrasta, com dignidade, à adaptação ao mercado.
As grandes mobilizações antiglobalização do início dos anos 2000, questionando Davos e com seus Fóruns Sociais Mundiais, se limitaram ao debate da ética e solidariedade e outras importantes questões neste terreno, mas nada que se sobrepusesse ao capitalismo e seu mercado (Um outro mundo – capitalista e cheio de ONGs - é possível!). Os países latino-americanos que romperam com o torniquete imperialista já no século XXI, como Venezuela, Bolívia e Equador, para citar os mais badalados pela esquerda, ainda têm suas economias funcionando, mesmo com formas mistas convivendo conjuntamente, dentro do quadrilátero do mercado capitalista. O saudoso Hugo Chaves Frias, talvez o mais preocupado dentre os líderes latino-americanos recentes com a afirmação ideológica de uma ruptura anticapitalista, falava mais em bolivarianismo que em socialismo. As supostas primaveras árabes que sacodem aquela região parecem mais solapar governos fora da ordem ocidental, mas com forte viés autoritário, numa perspectiva mesmo de desorganização daqueles estados e de ocidentalização do seu modo de vida, ou seja, caminham, na melhor das hipóteses – pois há a possibilidade de retrocessos teocráticos - para democracias liberais capitalistas bem comportadas e submissas ao capital internacional.
Em suma, tudo indica que os problemas do socialismo no século XX não estiveram circunscritos apenas às questões do exercício do poder político, mas – e talvez seja esta a lição mais profunda, pois não dependia de condições apenas subjetivas, mas objetivas -, sobretudo, não conseguiram construir uma formação econômica hegemônica com um metabolismo espontâneo de produção e circulação de riquezas baseado na solidariedade, na colaboração e na sustentabilidade, na não-alienação, ou que, de alguma forma, tivesse pelo menos algum embrião de não-desenvolvimento natural da tendência à acumulação e reprodução de capital com base na concorrência predatória. Nenhuma experiência conseguiu erguer uma formação econômica que produzisse riqueza, ou seja, incorporação de valor-trabalho num processo produtivo, com mais qualidade e produtividade que o capitalismo e baseado no trabalho de homens ao menos supostamente livres, repetindo o que foi a dinâmica de superação do feudalismo pelo capitalismo. A economia, neste século, se mostrou um organismo vivo e autônomo, rebelde, não um deus como querem os liberais, mas com regras bem hospedadas no espírito humano sintetizado no curso histórico, algo que se mostrou ainda indomável às pretensões socialistas no século XX.
A impressão que fica é que sobrou aos socialistas apenas uma espécie de vitória moral ou exercício de profissão de fé, onde o lócus da vitória maior, para alguns, não estaria sequer nas nações que ergueram Estados se contrapondo ao capitalismo. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, no final de 2011, um insuspeito Antônio Cândido, parte viva da luta socialista no Brasil, fez as seguintes afirmações, me parecendo expressar bem o sentimento mais honesto: “(...) eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo.(...) Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. (...)” (...) Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia (...)”.
Eduardo Galeano, discorrendo sobre a utopia, num texto que jovens socialistas adoram postar em seus perfis no facebook, parece querer colocar poesia na resignação de Antônio Cândido: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe,  jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Em profundo respeito a Galeano e à poesia que guarda seu texto, melhor não ser tão sincero sobre as múltiplas interpretações e sensações de desconforto que suas palavras ensejam quando tratamos de luta política, de disputa de hegemonia.
David Harvey, intelectual marxista inglês que muito tem influenciado nossas reflexões políticas recentes, não se incomoda em afirmar em suas entrevistas e exposições, após explicar brilhantemente as razões e a dinâmica das crises do capitalismo, que os socialistas marxistas como ele não têm soluções concretas, um modelo alternativo a apresentar a esta situação. Istvan Meszaros, em seu ensaio “O Século XXI: Socialismo ou Barbárie”, publicado em 2001, ensina muito bem o conceito de alienação em Marx, mas resolve se atirar na política e então faz previsões catastrofistas sobre o imperialismo norte-americano que, hoje sabemos, não sobreviveram a uma única década sequer.
Slavoy Zizek, numa de suas obras cujo título sugere caminhos para a superação da crise do socialismo, “Em defesa das causas perdidas”, absolve Stalin – “O Stalinismo revisitado, ou como Stalin salvou a humanidade do homem”, é o subtítulo de um dos capítulos - com o argumento de que aquela experiência “socialista” poderia ter sido muito pior, citando trechos tenebrosos de escritos de Leon Trostky sobre a natureza humana e de Alexey Gastev, um engenheiro e poeta, administrador do Instituto do Trabalho russo, que era obcecado em biomecânica e realizava experiências para que os homens trabalhassem como máquinas e não mais fossem reconhecidos como pessoas, mas como “unidades proletárias”, identificados com números ao invés de nomes. Ou seja, Stalin ainda não foi o pior que o comunismo poderia ter produzido, excluindo, claro, a flagrante patologia do Camboja, que de tão absurda sequer entra na literatura.
Então, estaria a humanidade condenada a tão somente humanizar o capitalismo numa ação política nos limites do anticapitalismo? O capitalismo, já em sua fase senil, destrutiva, abre-alas e pavimentador dos territórios da barbárie social, com sua “destruição criadora”, com suas obsolescências planejadas criminosas, seria ainda assim reformável e administrável? Não estaria mais na pauta dos socialistas a construção de uma formação econômica e social hegemônica em que a solidariedade e a colaboração espontâneas no processo produtivo, com plena liberdade, seriam os pilares para a construção de uma nova consciência social, de um mundo novo? O capitalismo não seria mais um modo de produção transitório, que abriria, ele mesmo, as condições objetivas para o surgimento de outra formação econômica hegemônica, como se depreende naturalmente da aplicação do método marxiano? Este método, então, teria perdido sua aplicabilidade e estaria condenado ao exotismo do mero exercício ideológico no intramuros de meios acadêmicos, transformado em dogma e protegido por instituições e intelectuais bem entrincheirados, somente?
A situação de crise de paradigmas e as respostas que vão sendo dadas por notáveis intelectuais socialistas sobre as saídas (im)possíveis levam outros socialistas honestos e de bom senso -  de envergadura intelectual incomensuravelmente inferior, mas que estão no front das operações políticas de disputa de poder, como é o nosso caso - a fazerem-se as perguntas acima. Estamos, até o limite de nossa compreensão, entre os que entendem o método marxiano como imprescindível para compreender a dinâmica econômica e social no século XXI, dando-nos plenas condições de militar politicamente para mudar o mundo, pois é disto que se trata quando militamos pela estratégia socialista.
Mas pensamos que a resposta honesta a estas perguntas exigirá do movimento socialista admitir a dor de um parto difícil, despir-se de subjetividades meramente ideológicas e apegos românticos ao passado, fazer autocríticas profundas, além de ousar de forma revolucionária nas análises e elaborações políticas. Nas palavras de Leandro Konder, abrindo livro de nome sugestivo de Norberto Bobbio, “Qual socialismo?”: “(...) um processo que passa por autocríticas intranquilizadoras, frequentemente dolorosas (...)”. Konder sugere a entrada de Bobbio no debate para ajudar na elaboração de saídas aos socialistas e nos ensina assim algumas direções a tomar – a principal delas a humildade -, admitindo a profundidade da crise de paradigma dos socialistas.
II – A pertinência prática deste debate
Por mais distante do calor da luta de classes imediata que este debate possa parecer para alguns, ele é de vital importância para o abastecimento do espírito revolucionário daqueles que não travam os combates políticos apenas numa perspectiva de sua consciência imediata. Sem teoria revolucionária, realmente não há prática revolucionária, como afirmava Marx sobre a importância de se ter método científico na luta política. A utopia enquanto algo conscientemente inatingível, um sonho ainda bruto a ser lapidado, tem seu valor é claro, mas, somente assim, é absolutamente insuficiente para que conquistemos corações e mentes rebeldes de todas as gerações para uma causa perene, de toda a vida. É papel dos socialistas dar concretude e viabilidade científica para a nossa utopia, para nossa consciência histórica, sob pena de darmos um salto ao passado, para antes da elaboração por Engels do seu “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, e sermos “elevados” à condição de novos Fouriers e Owens em pleno século XXI. Óbvio que esta situação é menos desconfortável que ser tratado como um “comuna” de estilo militarizado e um tanto desapegado a liberdades demais, mas tudo aí é desconfortável e, pior, improdutivo e desmobilizador, quando não desmoralizante.
Esta falta de firmamento desorganiza a luta política consciente e a capacidade de aglutinação, mesmo que fluida, numa mínima grande narrativa de real transformação social. Na medida em que não se tem um “geral” confiável de onde se parta ou se referencie minimamente para um “particular”, este “particular” de cada um se transforma no “geral” de cada um, uma fragmentação com um atraente viés libertário, é verdade, mas absolutamente dispersa, numa perspectiva puramente individualista. Na militância de esquerda e socialista o resultado é a fragmentação, em nível de torcidas organizadas doentias, e a fragilidade que assistimos. No cidadão comum, mas também mesmo entre segmentos organizados na esquerda, isto descamba não raro numa maratona, cada dia menos envergonhada, para concorrer competitivamente e predatoriamente no mercado de trabalho, ao gosto do melhor capitalismo senil.
Quem não conhece incontáveis sujeitos com práticas de esquerda, humanistas, lutadores sociais, defensores de causas importantes, mas que se dizem pós-ideológicos: nem de esquerda e nem de direita; voto no candidato, não no partido; partido é tudo igual; a luta dos índios tá justa, mas os sem-terra são um despropósito, etc. Cresce, nas pessoas mais críticas e de espírito mais aberto à defesa de uma sociedade mais justa, um espírito meio anárquico-fisiológico, quando não muito anárquico, como se percebe com mais força nas juventudes. Ou seja, a falta de “janelas” pós-capitalistas suficientemente abertas e perceptíveis como tal pela inteligência humana, acaba por incidir negativamente mesmo na luta mais consciente anticapitalista. A “classe em si”, distancia-se cada vez mais da “classe para si”.
David Harvey já apontava em seu clássico “Condição Pós-moderna” (1989), que a crise do materialismo histórico – já naquela época – e sua incapacidade de compreensão e apreensão política frente à efervescência desta condição pós-moderna, levou a disputa entre a esquerda mais atenta e a direita mais disposta nos anos 1970/80 para o terreno do imaginário, da estética, das imagens e do simbólico, do poder meramente ideológico, sendo que exclusivamente neste terreno os conservadores seriam mais consistentes na defesa de suas posições e nas críticas aos efeitos desta condição no comportamento social, aos excessos dos anos 60, ao maio Francês de 68. As religiões, por exemplo, propõem um início, um meio e um fim para a história, uma utopia “realizável” e até simples de ser entendida e aceita quando se está em meio a um labirinto e sem outra bússola à mão.
Passados vinte e cinco anos da publicação da obra prima de Harvey, a crise do materialismo histórico ampliou-se, a crise do capitalismo também, aprofundando os traços de barbárie, sobretudo no meio urbano, com crises na mobilidade, na moradia, na segurança pública. Os comportamentos supostamente “desviantes” denunciados pelos conservadores lá na década de 1970, só fizeram avançar também. O resultado desta equação no tempo talvez seja o que assistimos hoje com o fortalecimento de segmentos mais conservadores polarizando no ambiente político, sugerindo, no caso do Brasil, pautas de absoluto retrocesso.
Este debate também é fundamental para que sejamos mais equilibrados e responsáveis nas expectativas e nas cobranças em relação a governos de esquerda e de orientação socialista que temos tido ou que virão, e obviamente naquilo que propomos à sociedade como propostas a serem implementadas pelos socialistas no poder, principalmente nas questões de ordem econômica. Ter equilíbrio nisto significa não alimentar falsas expectativas que venham a gerar frustrações por absoluta falta de senso de proporção política. Saber quais são os limites físicos da ação de governos socialistas e saber quais são os limites e possibilidades de ação política e no desenvolvimento de condições objetivas de superação da supremacia da lógica do capital na economia é algo da maior relevância e urgência.
Por fim, é fundamental levar este debate adiante e ao seu limite possível para que saibamos nos posicionar com visão mais estratégica nos enfrentamentos ao qual somos convocados, no Brasil e no mundo, e também saber localizar nas pautas das burguesias e seus governos o que é de curto, médio e longo alcance, construindo a nossa pauta de resistência com as devidas hierarquias e prioridades, com bases político-programáticas amparadas cientificamente.
III – Limites do desenvolvimento das forças produtivas na geografia vivida apenas no ambiente analógico-macroscópico do século XX
Frente a esta situação de crise, talvez um caminho a ser explorado seja assumir que o capitalismo realmente conseguiu movimentar-se, adaptar-se e submeter aos seus interesses e à sua dinâmica a plenitude do espaço geográfico no planeta Terra, cujo manejo social no século XX ainda se baseava nas tecnologias analógicas e na física newtoniana. O planeta Terra, sentido e explorado nos limites destas tecnologias, ainda seria demasiado grande, tornando o capitalismo objetivamente invencível pelas forças pós-capitalistas. Os limites impostos por esta geografia, ou seja, desta infraestrutura no conceito marxiano, com estes limites tecnológicos, entraram num tipo de sinergia no processo de produção e circulação de riquezas que acabaram impondo uma espécie de “teto” ao processo de desenvolvimento de formações econômicas e sociais estruturalmente distintas ou superiores. Sair do capitalismo seria similar a um “cachorro tentando morder o próprio rabo”, em velocidade cada vez maior, e perdendo para o cansaço. A questão é esta: o pós-capitalismo então teria sido uma impossibilidade objetiva no século XX? Os limites de nossas possibilidades de experiência sensorial no espaço e no tempo, na geografia como ela se apresentava e se permitia ser sentida e explorada como prática social no século XX, teria imposto à humanidade ter que conviver com o capitalismo, mesmo na mais profunda crise?
É uma hipótese a ser levada seriamente em consideração, caso contrário corremos o risco de apenas fulanizar a história da luta socialista no século XX, como muitos já o fazem, culpando Mao, Stalin, correndo o gravíssimo erro de não tirar daí todos os ensinamentos possíveis e imprescindíveis. Os socialismos reais ou supostamente reais que se debateram e se debatem ainda hoje, heroicamente, corretamente e felizmente, no árido movimento anticapitalista, pelo visto não teriam a capacidade de perfurar este teto, pois no estrito limite da infraestrutura e das relações sociais no espaço e no tempo dela decorrentes, o desenvolvimento das forças produtivas não encontrou magnitude tal que as colocassem em contradição definitiva e incontornável com as relações sociais de produção efetivamente existentes, ou seja, o capitalismo, seu mercado e sua alienação.
Dito a partir de outro ângulo, as forças produtivas desenvolvidas no século XX não permitiram uma compressão tal do espaço-tempo (conceito chave em David Harvey) que tornasse o planeta Terra em algo microscópico, situação que parece ser uma pré-condição para o pós-capitalismo vir à superfície, diante da capacidade de adaptação do modo de produção capitalista a um mundo ainda limitado na prática social cotidiana à proporções macroscópicas. As lutas que vimos empreendendo, imprescindíveis, na verdade sempre teriam sido abastecidas pela subjetividade de honestos lutadores socialistas e do povo, que não exige um protocolo de garantia de saída do modo de produção capitalista para resistir, ao limite, contra as condições degradantes impostas inexoravelmente como subproduto do funcionamento do mercado capitalista cada vez mais predatório e excludente.
IV – O Século XXI e a geografia mundial na era digital-microscópica
Em 1998, durante o governo do socialista Lionel Jospin na França, uma importante jornada de debates, patrocinada pelo seu Ministério da Educação, foi coordenada pelo renomado pensador Edgar Morin. As “Jornadas Temáticas”, como foram idealizadas por Morin, apresentavam “A Religação dos Saberes” como um grande desafio do século XXI – vejam que espetacular ação um governo socialista pode e deve levar adiante.  Foram oito jornadas com renomados pensadores de várias áreas. A sétima jornada, sobre culturas adolescentes, teve como um dos temas Cybercultura e Infoética. Phillipe Quéau, cientista responsável pela problematização da temática, levantou um conjunto de considerações sobre as grandes contradições presentes nesta revolução, sobre seus impactos culturais, sociais, econômicos e políticos. Em meio a muitas interrogações, notem a afirmação: estávamos vivendo uma revolução. Citando as teses do antropólogo francês André Leroi-Gourhan, para quem as grandes etapas da civilização humana foram marcadas por abstrações radicais: o grito abstraiu-se na fala; a mão na ferramenta; o oral no escrito (o que não deixa de dialogar com o método marxiano), Quéau conclui que o real estaria então se abstraindo no virtual neste exato momento histórico, com impactos na civilização que poderiam ser tão transformadores quanto a criação do alfabeto.
O domínio das tecnologias digitais e sua popularização trouxe-nos à internet e a todo um conjunto de ferramentas/aplicativos de comunicação, linguagem, interação, informação e processamento de todos esses conteúdos convertidos em dados matemáticos, informação numérica que pode ser compactada em dispositivos de armazenamento cada vez maiores em memória e menores em tamanho físico ou então na nuvem digital. Com a convergência digital inevitável entre informática e telecomunicações, criou-se assim uma espécie de novo ambiente societário, territórios informacionais, de troca, de trabalho, de lazer, de estudo, de crimes, enfim. A geografia do planeta assumiu uma dimensão, finalmente, microscópica. Neil Armstrong, em 1967, chegou à Lua com um computador de 2 KB (2 mil bytes) de memória RAM. Hoje não é difícil encontrar um telefone celular com 8 GB (8 bilhões de bytes) de memória. A proporção do salto é esta. Os continentes e todos os recantos do planeta já estão conectados à velocidade da luz como uma prática social cotidiana.
A esta revolução somam-se outras. Apenas quinze anos nos separam daquelas pertinentes reflexões de Quéau. As redes sociais deram um salto; as impressões em 3D já são uma realidade. Nos EUA, já há a preocupação por parte da indústria de armas com a impressão de armas de fogo, baixadas pela internet, em ambientes domésticos. Em 2013 foi comemorado o primeiro teletransporte de um corpo macroscópico em distância também macroscópica, feito com sucesso numa associação entre alemães e chineses. Os avanços permanentes na química fina não são menos animadores. A compressão do espaço-tempo no planeta para a interação de dados/pessoas em larga escala na velocidade da luz, aliado a estas tecnologias assessórias, abre hipóteses que podem ir muito além do que possamos imaginar, na cultura em geral, no gerenciamento e fiscalização da gestão pública, no aprimoramento da democracia, enfim. Mas o que nos interessa aqui são os impactos possíveis na economia política, na consciência social a respeito das relações sociais de produção.
V – Movimento das forças produtivas, enfim, em confronto direto com a estrutura econômica do Capital
Acreditamos que aqui esteja o ponto mais difícil deste texto, pois não vamos apenas narrar fatos históricos sistematizados para amparar uma hipótese. Vamos trabalhar sobre o presente e sobre o futuro, tentando utilizar da melhor forma o modo de análise marxiano. Além de mais difícil, também é o mais importante, o “pulo do gato”, o ponto mais alto de todo este debate, pois se localiza neste tópico a questão da alienação do trabalho no modo de produção capitalista nesta nova realidade.
Trabalhamos com a hipótese de que podemos estar vivendo um momento histórico em que a alienação imposta pelo Capital ao Trabalho, o teto imposto à criatividade humana, o estranhamento do Trabalho com aquilo que ele próprio cria, a escravização de sua consciência, ficará à vista como uma fratura exposta, desnudando ao mais simples dos mortais toda a irracionalidade e os truques do capitalismo em sua luta por sobrevivência, todo o seu parasitismo e obsolescência.
Istvan Meszaros nos ajuda a compreender melhor o conceito de alienação em Marx: “(...) o desenvolvimento da divisão funcional – em princípio universalmente aplicável - do trabalho constitui a dimensão horizontal potencialmente libertadora do processo de trabalho do capital. Porém, essa dimensão é inseparável da divisão vertical/hierárquica do trabalho no quadro de estrutura de comando do capital. A função da dimensão vertical é proteger os interesses vitais do sistema assegurando a expansão contínua da extração do sobre trabalho baseada na exploração máxima praticável da totalidade do trabalho. Consequentemente, a força estruturante horizontal só pode se desenvolver até o ponto em que permanece sob o controle firme da dimensão vertical no horizonte reprodutivo do capital. Isso quer dizer que ela só pode seguir sua própria dinâmica até o ponto em que os desenvolvimentos produtivos seguintes permaneçam contidos nos parâmetros dos imperativos do capital. As exigências de controle de ordenação vertical do capital constituem o momento supremo na relação entre as duas dimensões. Mas, ao passo que na fase ascendente do desenvolvimento do sistema as dimensões horizontal e vertical se complementavam por meio de trocas recíprocas relativamente flexíveis, uma vez terminada a fase ascendente, o que antes era momento predominante de um complexo dialético se transforma numa disruptiva unilateral, que traz em si graves limitações ao desenvolvimento produtivo (...)”. Mesmo não observando a importância da compressão do espaço-tempo no movimento das forças produtivas e na produção dialética de uma consciência social que se choque com a dinâmica alienante do Capital, o raciocínio de Meszaros, intérprete das obras de Marx, é de uma precisão metodológica cirúrgica, como esperamos mostrar.
A rede mundial de computadores, a internet, como está amplamente popularizada, se estabelece exatamente numa estrutura vertical, numa relação “cliente <> servidor (máquina central)”. Toda vez que um usuário quiser baixar um arquivo que está na rede, por exemplo, terá que “pedir autorização” para o seu servidor, que obviamente é uma empresa capitalista. O servidor acaba funcionando como uma espécie de pedágio ou posto de fiscalização, que diz o que pode e o que não pode ser disponibilizado gratuitamente e aquilo que só será disponibilizado mediante desembolso financeiro. Qualquer semelhança com uma espécie de feudo medieval encravado na geografia digital, impedindo a passagem do progresso, não é mera coincidência. Esta estrutura vertical torna-se menos produtiva, mais pesada, menos segura e agrega menos qualidade em serviços procurados por clientes/usuários na medida em que já é possível estabelecer-se amplas redes horizontais, mais rápidas, mais leves, mais seguras e, principalmente, totalmente democráticas e dependentes desta democracia.
É o que acontece com a arquitetura P2P (Peer to Peer), ou Ponto a Ponto, uma rede que se sobrepõe horizontalmente à relação vertical, como um viaduto, permitindo que todos os clientes/usuários relacionem-se diretamente uns com os outros, sem servidores. Todos são ao mesmo tempo clientes e servidores, compartilhando tudo, de arquivos a memórias. A colaboração e a solidariedade são as bases da ética aí construída, não há propriedade privada possível, tudo é coletivo, não por uma questão de natureza moral, mas porque assim se agrega mais produtividade e qualidade ao “Commons”, ou “bem comum”, que os levou até ali. Neste universo, ainda embrionário, a sociedade e seus indivíduos livremente associados, querem e podem administrar não a fraude da escassez, mas a abundância daquilo que necessitam. De cada um conforme suas potencialidades, para cada um conforme suas necessidades, com plena liberdade.
Michel Bauwens, criador da Fundação P2P, explica melhor do que se trata, em entrevista concedida ao site Cultura Digital: "(...) O commons e o p2p são apenas aspectos diferentes do mesmo fenômeno, o commons é o objeto que a dinâmica p2p está construindo, e o p2p ocorre onde há bens comuns. Lembre-se, eu não uso o termo p2p em um sentido puramente tecnológico, mas em um sentido sociológico, como um tipo de relacionamento (...)” “(...) o movimento p2p tem um papel histórico muito importante a desempenhar, mas que é bastante difícil quantificar isso. Primeiro, o que queremos dizer quando falamos de um movimento p2p? O conjunto de causas subjacentes está ligado à horizontalização das relações humanas que é viabilizada pelas tecnologias p2p, entendida no sentido amplo de permitir a agregação de indivíduos livres em torno de valores compartilhados ou na criação de valor comum. Este é, naturalmente, uma grande mudança social. Poderíamos argumentar que uma emergente vanguarda sócio-cultural está ativamente construindo novas formas de vida, novas práticas sociais e novas instituições humanas (...). Em todo o mundo estamos vendo emergir comunidades que estão desenvolvendo novas práticas sociais que são informadas pelo paradigma p2p. Em um outro nível esta é também uma revolução ética, que registra o crescimento de valores fundamentais tais como abertura (openness, a qualidade de ser aberto) e liberdade em relação às ‘entradas’ (inputs) compartilhadas em processos de produção entre pares; participação e inclusividade como elementos básicos do processo de cooperação; e uma orientação ao ‘commons’ (distribuição universal) na gestão das saídas (outputs) do processo. Economicamente, por exemplo, um estudo recente estimou que o setor de conteúdo aberto nos EUA iria alcançar um sexto do PIB. Finalmente, existem as novas expressões políticas. Eu considero as praças ocupadas na Europa como expressões desta emergente mentalidade p2p. Você poderia dizer que o movimento tem duas alas, uma ala construtiva de pessoas desenvolvendo novos instrumentos e práticas, como por exemplo descrito no livro de Chris Carlsson, ‘Nowtopia‘, e uma ala mais ativa de resistência ao neoliberalismo, que está buscando formular novas maneiras de conceber as mudanças sociais, e que não são cópias carbono das abordagens da velha esquerda. No entanto, é importante ressaltar que este movimento está ainda em uma fase precoce de emergência, e não em nível de paridade com o mundo neoliberal mainstream (...).”.
Chega a impressionar como os termos e projeções visuais usados por Marx e Meszaros são exatamente os mesmos em que se dá a arquitetura do conflito incontornável entre a dimensão horizontal libertária de produção e criatividade e o filtro alienante que impede a progressão, presente na dimensão vertical.
Em nosso sentir, está um curso uma revolução pós-capitalista, ou disruptiva unilateral para usar o termo de Meszaros. Ela não se dá pela via das relações analógico-macroscópicas; não se trata de uma reação de maiorias excluídas, exploradas e oprimidas com força tal para subverter a ordem hegemônica do capital. Sobre isto, a esquerda socialista mundial já viveu melhores momentos e não seria a chegada aos portões da barbárie ou uma suposta crise civilizacional – principalmente por conta da crise ambiental - que geraria uma reação com eficácia. O proletariado revolucionário de Marx migrou das fábricas para a geografia digital.
A revolução pós-capitalista que tratamos aqui, seguindo as leis do materialismo histórico fundado por Marx e Engels, só poderia mesmo ser “anunciada” por um sujeito social cujo interesse maior não é apossar-se do mundo velho, sobreviver nos/dos escombros de um mundo ainda predominantemente analógico na sua face produtiva, mas sim de um mundo novo, que brota naturalmente e dialeticamente de sua atividade laboral, que se vê impedida de progredir pelas forças do atraso do Capital. Esse sujeito, por excelência, tem que ser o mais qualificado, o mais produtivo, o mais criativo, precisa ser o que de mais elevado a cultura sob o capitalismo conseguiu produzir, como previu Marx, de forma que ele próprio se torne portador, porta-voz, artífice e principal defensor deste novo mundo, do futuro, incapaz de conviver com a alienação que o Capital lhe impõe. Aquela nação mais desenvolvida no capitalismo, apta a ser o palco deste teatro revolucionário, é uma aldeia global digitalizada.
VI – A “mão invisível” e o “espírito do capitalismo” migrando para um metabolismo econômico e social colaborativo em redes horizontais.
Adam Smith e Max Weber, sabedores ou não do uso que seria feito de suas produções intelectuais, estão entre os pensadores que mais profundamente alicerçaram ideologicamente o capitalismo e seu mercado. A teoria da “Mão Invisível”, o laissez faire, o “Espírito ‘democrático’ do Capitalismo”, supostos princípios de liberdade e democracia, enfim, sempre se articularam fortemente com o liberalismo econômico. As condições de liberdade e a democracia, supostamente inatas ao ser, confeririam então ao capitalismo uma espécie de status de naturalidade e inclusive de vitaliciedade.
Como se depreende dos tópicos anteriores deste texto, foi esta superestrutura ideológica, sua subjetividade, sua ética, este espírito e este impulso natural em busca da satisfação de interesses, que permitiu ao capitalismo suas metamorfoses e o desenvolvimento sem freios aparentes das forças produtivas e da criatividade humana no século XX; e que deu ao modo de produção capitalista uma autoridade moral e intelectual que se revestiu de hegemonia política - para usar um conceito de Gramsci - até os nossos dias.
Diante das hipótese que levantamos, como ficam os alicerces lançados por Smith e Weber? Ficam obsoletos e vão perdendo pertinência como acreditamos que vá acontecer com o modo de produção capitalista? Ou deslocam suas linhas de força para outro plano, indo sustentar, moral e intelectualmente, novos metabolismos econômico-sociais, deixando o modo de produção capitalista seminu, desprovido de razão e consequentemente de autoridade?
Parece-nos que a segunda opção é a mais plausível e isto é de absoluta relevância, pois a disputa de poder político é antes de tudo uma disputa por hegemonia, ou seja, pela pacificação de uma maioria ideológica na consciência social, uma hegemonia da liberdade e da democracia, algo muito mais belo e dialogante com nosso tempo do que Ditadura do Proletariado, um conceito mal compreendido e caricaturado, é verdade, mas que nem por isso lhe tira a simbologia de uma carranca assustadora.
VII – Pós-capitalismo é igual a socialismo?
Como afirma Michel Bauwens, do ponto de vista das possibilidades no universo da economia, o real abstraído no virtual ainda é bastante embrionário, mas é absolutamente previsível para os que se utilizam do método marxiano que aí brotam novos burgos, de onde sairão os milionários de uma nova riqueza: o conhecimento, a “polpa” do valor-trabalho, origem primeira da riqueza. A esquerda socialista precisa estudar as dinâmicas deste processo. Parece estar em relevo que este pós-capitalismo conjugará uma formação econômica híbrida, sem hegemonia do capitalismo, claro – o que não significa a extinção desta formação no curto prazo -, mas com cooperativismo/colaboracionismo/solidarismo, formas coletivizadas, formas estatais, anarco-liberais, com muito empreendedorismo individual, pois, até onde nossa abstração alcança, não vemos como haver ricos, detentores de capital, nestas relações sociais de produção, pois não haverá acumulação de capital em massa. Talvez o capitalismo apodrecido por tanto tempo no século XX tenha represado tantas forças produtivas e criatividade que esta hibridez seja uma necessidade objetiva do novo “sistema” que poderá brotar.
VIII – Algumas palavras sobre ativismo quântico
Colocamos propositadamente no título deste texto o termo “infraestrutura quântica”, mesmo sabendo que falaríamos quase nada sobre isto, mas para deixar claro nossa convicção na ortodoxia do método marxista. Entendemos que os processos analógicos estão para os processos digitais assim como a dimensão da física newtoniana está para a física quântica. Seguindo as leis do movimento, da dialética, é razoável pensar que, assim como as tecnologias analógicas foram superadas pelas digitais, também esta será superada. Desde o início do século XX a energia quântica ganhou status de ciência. Suas características, porém, escapam ao conceito mais rigoroso de técnica científica como a cultura ocidental a concebe, sendo suas práticas ainda confinadas ao universo do exótico e do alternativo, notadamente na medicina e outras áreas que atuam sobre o corpo humano. Cientistas respeitados no mundo, como o físico nuclear indiano Amit Goswami, tem feito um largo esforço para difundir o ativismo quântico que, grosso modo, contribui de forma extraordinária para diminuir sensivelmente a distância que separa a ciência da fé religiosa, explicando cientificamente fenômenos reais até então inexplicáveis. Este tema e esta dinâmica não podem escapar à atenção dos socialistas, que devem ter em sua prática política o compromisso com o desenvolvimento destes conhecimentos, ainda mais quando se torna cada dia mais previsível que talvez uma das últimas trincheiras do Capital seja exatamente na área das ciências médicas e biomédicas.
IX – O que é o socialismo no século XXI?
O método marxiano não pode servir apenas para constatarmos, a posteriori, que ele é eficaz. Ele deve ser utilizado para orientar a ação do movimento socialista, prevendo o devir. Este é o objetivo supremo da ciência, apreender os fenômenos para que possamos prevê-los e anteciparmo-nos a eles, preparando-nos para recebê-los da melhor forma, ou influindo sobre eles, sobre seus ritmos, sobre seus desdobramentos, ou mesmo evitando que aconteçam, quando for conveniente e necessário ao bem comum.
Como afirmamos na apresentação deste texto, já há alguns anos que estamos observando estes fenômenos e também o fato de haver uma desconexão entre a luta anticapitalista e a luta pós-capitalista. A primeira se dá no campo macroscópico, a segunda no microscópico. A primeira é resistência, é anti, e este é seu limite histórico-geográfico, objetivo; a segunda é superação, é pós, e seu limite hoje são barreiras apenas subjetivas, impostas pelos interesses de lucro do Capital. O desafio da esquerda socialista nesta nova era é saber costurar estas dinâmicas para combater o inimigo comum: a alienação do Capital, que impede que a satisfação plena das necessidades humanas, no mundo analógico e digital, seja alcançada através do exercício da liberdade criativa e sem limites nas relações sociais de produção orientada pelo bem comum, ou pelo comunismo, como queiram.
Lênin, após o triunfo da Revolução Russa, foi perguntado sobre o que era socialismo para ele. Sua resposta: “Socialismo = Soviets + Eletricidade”. Se nos fosse perguntado o que é o socialismo ou uma proposta socialista hoje, responderíamos: “Socialismo = democracia e liberdade política radical + inclusão digital indiscriminada e horizontalizada em banda larga”. Com um pouco de poesia: “o socialismo é o caminho da desalienação que liberta e nos enche o peito de vontade de viver o futuro”.
Edilson Silva, 44, é técnico eletromecânico, estudou Economia na UFPE, não chegando a concluir o curso. É graduando em Direito e há mais de 20 anos dedica-se ao movimento sindical, como sindicalista e assessor de várias entidades. É fundador e presidente do PSOL-PE e Secretário Geral Nacional do mesmo partido, tendo sido candidato a governador de Pernambuco em duas ocasiões, 2006 e 2010, e também à prefeitura do Recife em 2008. Em 2012 foi candidato a vereador do Recife, sendo o 3º mais votado da cidade, não assumindo uma cadeira por deficiência do quociente eleitoral. Todas as candidaturas pelo PSOL.