Por Edilson
Silva*
Introdução
Este texto,
apesar do título pretensioso, é apenas uma contribuição ao debate sobre a
atualidade do socialismo como estratégia de sociedade, dialogando com os que se
veem sem respostas substantivas diante do que se convencionou chamar “crise do
socialismo”. Pretendemos circular esta contribuição prioritariamente entre os militantes
do PSOL que constroem o agrupamento interno “Somos PSOL”, mas também
entre os que conosco militam e compartilham sonhos de mudança na ordem
econômica e social, buscando alternativas de longo prazo, teóricas e programáticas.
Trata-se de uma continuação, menos descuidada, de um texto também produzido por
nós já em 2011, “As digitais de Marx nos
vestígios de pós-capitalismo”, em que já especulávamos as hipóteses aqui
apresentadas, da impossibilidade objetiva da superação da hegemonia da economia
de mercado no século XX e das possibilidades objetivas desta superação a partir
das conquistas tecnológicas que permitem a abstração do real no virtual no
século XXI e das perspectivas científicas e tecnológicas no universo na física
quântica.
Abrimos aqui,
como verão os que se dedicarem à leitura, muitas “janelas”. É na verdade uma
tempestade de ideias e como tal guarda certamente imprecisões, talvez precipitações,
inadequações de categorias, sobretudo pelos limites do autor desta tempestade,
que confessadamente não reúne as melhores condições para esta empreitada. Mas a
impaciência e a urgência de respostas, aliado às nossas responsabilidades de
dirigente e referência política, falaram mais alto, diante talvez de uma também
incapacidade nossa de perceber, na produção acadêmica formal, respostas satisfatórias
diante das demandas concretas colocadas para o movimento socialista neste
início de século.
Há, por
óbvio, produção, informação e conhecimentos neste sentido - e é onde tentamos
buscar as respostas -, mas parecem estar dispersos, não sistematizados como
pensamos ser o mais correto e não se convertendo, portanto, em possibilidade de
aplicação como uma teoria eficaz, para a compreensão do que ocorre na luta de
classes neste caldeirão pós-moderno e aparentemente pós-ideológico; nem numa
perspectiva sincera de gerar a unidade de ação da luta anticapitalista que
ainda se dá no plano analógico-macroscópico, com aquela que se desenvolve no
plano digital-microscópico. Dinâmicas que se dão, ainda, separadamente.
Logo, é uma extrema
ousadia de nossa parte, mas esperamos e estamos abertos à prática da construção
colaborativa para aferir o que há de sustentável a ser desenvolvido e o que
deve ser abstraído ou corrigido. É um convite à discussão. Fizemos um esforço
quase desumano para comprimir ao máximo o texto e garantir a leitura do máximo
de interessados em interagir. A ideia é que sirva para a militância concreta. Boa
leitura e vamos ao debate!
I – A vitória
da hegemonia da economia de mercado no século XX. Um fato histórico.
Em “A ética
protestante e o espírito do capitalismo”, Max Weber afirma que as tentativas de
superação do capitalismo são coisas do jardim de infância da história cultural.
A crítica tem um endereço certo: as teses políticas de Marx e o movimento
socialista que se avolumava em sua época, sobretudo na Alemanha. Escrito em
1908, o texto de Weber já é um ancião, com seus 105 anos. A história deste
pouco mais de século que nos separa, deixou marcas sensíveis de consentimento
às palavras de Weber. O capitalismo, como ele o via, é realmente resistente, e
talvez mesmo insuperável.
Tento
explicar. Weber empresta ao seu capitalismo conceito distinto daquele dado por
Marx. O primeiro trata o capitalismo como um impulso humano natural em busca de
seus interesses – ação social racional em relação aos fins, ou interesses
capitalísticos, quando forem materiais -, presentes desde sempre na história da
cultura humana. O segundo trata o capitalismo como um modo de produção
historicamente determinado, localizado num encadeamento cronológico-histórico, lógico-dialético,
de transformação das formações econômicas e sociais. Visto com mais cuidado e sem
paixão ideológica, há a hipótese da convivência entre as ideias dos dois
gigantes do pensamento social. O capitalismo a que Marx se refere, um modo de
produção de caráter transitório segundo seu método, é aquele que encontrou na
ética protestante, segundo Weber, o seu espírito de organização racional numa
sociedade/mercado de homens livres, que comercializam sua força de trabalho neste
mercado, tornando-se, então, também mercadoria, e sofrendo, portanto, não só um
processo de exploração, mas também de alienação, com os respectivos
desdobramentos que vamos tratar mais a frente.
O movimento
socialista bate-se hoje com os mesmos temas levantados lá naquele início de
século passado: o debate sobre as possibilidades de ultrapassagem do
capitalismo. Não se trata de debater a necessidade desta ultrapassagem, mas a
sua possibilidade. Debatemos hoje, porém, com uma grande desvantagem política:
no início do século XX a utopia socialista era uma força social viva e vibrante.
Vencido este século, tão intenso, este parece ter dedicado mais atenção ao que
aparecia na superfície do pensamento de Weber, com os socialistas nitidamente
na defensiva, a ponto de uma relevante articulação de organizações socialistas
francesas de caráter mais radical, de forte conteúdo trotskista, há poucos anos
ter fundado um novo partido que não se chamava socialista, mas tão somente
NPA-Novo Partido Anticapitalista. O que estava explícito e implícito no nome já
revelava suas certezas e suas incertezas. No Brasil, o fato do partido de maior
repercussão na reorganização da esquerda socialista recente, Partido Socialismo
e Liberdade, precisar adjetivar seu socialismo com o nome liberdade, é também reflexo
deste quadro.
Antes de
qualquer acusação de anticomunismo, reafirmo que, para o bem e para o mau,
ninguém está autorizado a acusar os socialistas e comunistas de não terem
enfrentado a fúria de um capitalismo descontrolado, com suas duas grandes
guerras, suas crises violentas; de não terem tentado erguer formações
econômicas e sociais mais avançadas. Ninguém pode negar o papel de antítese que
o comunismo no século XX cumpriu na síntese de um capitalismo ocidental menos
incivilizado, de ter feito a maior parte na derrota da maior ameaça à humanidade
no século XX, o nazismo. Mas, por outro lado, é muito difícil negar que este
comunismo também ensinou, da forma mais traumática, o que não se deve fazer em
nome do socialismo: sufocar a democracia e a liberdade. O resultado, ao final
de tudo, foi um salto ornamental, por absoluta força de uma espécie de
gravidade (para não usar a força de uma mão invisível) de volta ao tablado da
economia de mercado, não pela ação de um exército físico invasor, mas pela ação
espontânea e decidida de seus próprios povos em luta.
Além disso,
as lutas anticolonialistas da segunda metade do século passado tão pouco construíram
formações econômicas e sociais que nos deixassem à vontade sem antes termos que
fazer uns tantos reparos. A China, além das críticas à falta de liberdade e
democracia, está mais que inserida no mercado mundial; na verdade é uma
potência cuja solidariedade nas relações econômicas com outras nações está
absolutamente ausente e, mais que isto, anima no mercado mundial uma corrida
concorrencial que solapa os direitos de trabalhadores em todos os cantos do
planeta. A heroica Cuba, também com inegáveis problemas no quesito democracia e
liberdade, resistiu o quanto pode, mas se arrasta, com dignidade, à adaptação
ao mercado.
As grandes
mobilizações antiglobalização do início dos anos 2000, questionando Davos e com
seus Fóruns Sociais Mundiais, se limitaram ao debate da ética e solidariedade e
outras importantes questões neste terreno, mas nada que se sobrepusesse ao
capitalismo e seu mercado (Um outro mundo
– capitalista e cheio de ONGs - é possível!). Os países latino-americanos
que romperam com o torniquete imperialista já no século XXI, como Venezuela,
Bolívia e Equador, para citar os mais badalados pela esquerda, ainda têm suas
economias funcionando, mesmo com formas mistas convivendo conjuntamente, dentro
do quadrilátero do mercado capitalista. O saudoso Hugo Chaves Frias, talvez o
mais preocupado dentre os líderes latino-americanos recentes com a afirmação
ideológica de uma ruptura anticapitalista, falava mais em bolivarianismo que em
socialismo. As supostas primaveras árabes que sacodem aquela região parecem
mais solapar governos fora da ordem ocidental, mas com forte viés autoritário,
numa perspectiva mesmo de desorganização daqueles estados e de ocidentalização
do seu modo de vida, ou seja, caminham, na melhor das hipóteses – pois há a
possibilidade de retrocessos teocráticos - para democracias liberais
capitalistas bem comportadas e submissas ao capital internacional.
Em suma, tudo
indica que os problemas do socialismo no século XX não estiveram circunscritos
apenas às questões do exercício do poder político, mas – e talvez seja esta a
lição mais profunda, pois não dependia de condições apenas subjetivas, mas
objetivas -, sobretudo, não conseguiram construir uma formação econômica hegemônica
com um metabolismo espontâneo de produção e circulação de riquezas baseado na
solidariedade, na colaboração e na sustentabilidade, na não-alienação, ou que,
de alguma forma, tivesse pelo menos algum embrião de não-desenvolvimento
natural da tendência à acumulação e reprodução de capital com base na
concorrência predatória. Nenhuma experiência conseguiu erguer uma formação
econômica que produzisse riqueza, ou seja, incorporação de valor-trabalho num
processo produtivo, com mais qualidade e produtividade que o capitalismo e
baseado no trabalho de homens ao menos supostamente livres, repetindo o que foi
a dinâmica de superação do feudalismo pelo capitalismo. A economia, neste
século, se mostrou um organismo vivo e autônomo, rebelde, não um deus como
querem os liberais, mas com regras bem hospedadas no espírito humano
sintetizado no curso histórico, algo que se mostrou ainda indomável às
pretensões socialistas no século XX.
A
impressão que fica é que sobrou aos socialistas apenas uma espécie de vitória
moral ou exercício de profissão de fé, onde o lócus da vitória maior, para
alguns, não estaria sequer nas nações que ergueram Estados se contrapondo ao
capitalismo. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, no final de 2011, um
insuspeito Antônio Cândido, parte viva da luta socialista no Brasil, fez as
seguintes afirmações, me parecendo expressar bem o sentimento mais honesto: “(...)
eu
acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é
paradoxo.(...) Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem
tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser
explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo,
cristianismo social, cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar,
para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que
doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida
não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para
as crianças. Coisas que hoje são banais. (...)” (...) Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas
são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço.
Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre
o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com
meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se
pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com
suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter
férias... tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na
Rússia (...)”.
Eduardo Galeano, discorrendo sobre a utopia, num texto que
jovens socialistas adoram postar em seus perfis no facebook, parece querer
colocar poesia na resignação de Antônio Cândido: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo
dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre
dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar”. Em profundo respeito a Galeano
e à poesia que guarda seu texto, melhor não ser tão sincero sobre as múltiplas
interpretações e sensações de desconforto que suas palavras ensejam quando
tratamos de luta política, de disputa de hegemonia.
David Harvey, intelectual marxista inglês que
muito tem influenciado nossas reflexões políticas recentes, não se incomoda em
afirmar em suas entrevistas e exposições, após explicar brilhantemente as
razões e a dinâmica das crises do capitalismo, que os socialistas marxistas
como ele não têm soluções concretas, um modelo alternativo a apresentar a esta
situação. Istvan Meszaros, em seu ensaio “O Século XXI: Socialismo ou Barbárie”,
publicado em 2001, ensina muito bem o conceito de alienação em Marx, mas
resolve se atirar na política e então faz previsões catastrofistas sobre o
imperialismo norte-americano que, hoje sabemos, não sobreviveram a uma única
década sequer.
Slavoy Zizek, numa de suas obras cujo
título sugere caminhos para a superação da crise do socialismo, “Em defesa das
causas perdidas”, absolve Stalin – “O
Stalinismo revisitado, ou como Stalin salvou a humanidade do homem”, é o
subtítulo de um dos capítulos - com o argumento de que aquela experiência
“socialista” poderia ter sido muito pior, citando trechos tenebrosos de
escritos de Leon Trostky sobre a natureza humana e de Alexey Gastev, um
engenheiro e poeta, administrador do Instituto do Trabalho russo, que era obcecado
em biomecânica e realizava experiências para que os homens trabalhassem como
máquinas e não mais fossem reconhecidos como pessoas, mas como “unidades
proletárias”, identificados com números ao invés de nomes. Ou seja, Stalin
ainda não foi o pior que o comunismo poderia ter produzido, excluindo, claro, a
flagrante patologia do Camboja, que de tão absurda sequer entra na literatura.
Então, estaria a humanidade condenada a tão
somente humanizar o capitalismo numa ação política nos limites do anticapitalismo?
O capitalismo, já em sua fase senil, destrutiva, abre-alas e pavimentador dos territórios
da barbárie social, com sua “destruição criadora”, com suas obsolescências
planejadas criminosas, seria ainda assim reformável e administrável? Não
estaria mais na pauta dos socialistas a construção de uma formação econômica e
social hegemônica em que a solidariedade e a colaboração espontâneas no
processo produtivo, com plena liberdade, seriam os pilares para a construção de
uma nova consciência social, de um mundo novo? O capitalismo não seria mais um modo
de produção transitório, que abriria, ele mesmo, as condições objetivas para o
surgimento de outra formação econômica hegemônica, como se depreende
naturalmente da aplicação do método marxiano? Este método, então, teria perdido
sua aplicabilidade e estaria condenado ao exotismo do mero exercício ideológico
no intramuros de meios acadêmicos, transformado em dogma e protegido por
instituições e intelectuais bem entrincheirados, somente?
A situação de crise de paradigmas e as respostas
que vão sendo dadas por notáveis intelectuais socialistas sobre as saídas (im)possíveis
levam outros socialistas honestos e de bom senso - de envergadura intelectual incomensuravelmente
inferior, mas que estão no front das operações políticas de disputa de poder,
como é o nosso caso - a fazerem-se as perguntas acima. Estamos, até o limite de
nossa compreensão, entre os que entendem o método marxiano como imprescindível
para compreender a dinâmica econômica e social no século XXI, dando-nos plenas
condições de militar politicamente para mudar o mundo, pois é disto que se
trata quando militamos pela estratégia socialista.
Mas pensamos que a resposta honesta a estas perguntas
exigirá do movimento socialista admitir a dor de um parto difícil, despir-se de
subjetividades meramente ideológicas e apegos românticos ao passado, fazer autocríticas
profundas, além de ousar de forma revolucionária nas análises e elaborações
políticas. Nas palavras de Leandro Konder, abrindo livro de nome sugestivo de
Norberto Bobbio, “Qual socialismo?”: “(...) um
processo que passa por autocríticas intranquilizadoras, frequentemente
dolorosas (...)”. Konder sugere a entrada de Bobbio no debate para ajudar
na elaboração de saídas aos socialistas e nos ensina assim algumas direções a
tomar – a principal delas a humildade -, admitindo a profundidade da crise de
paradigma dos socialistas.
II – A pertinência prática deste debate
Por mais distante do calor da luta de classes imediata
que este debate possa parecer para alguns, ele é de vital importância para o
abastecimento do espírito revolucionário daqueles que não travam os combates
políticos apenas numa perspectiva de sua consciência imediata. Sem teoria
revolucionária, realmente não há prática revolucionária, como afirmava Marx
sobre a importância de se ter método científico na luta política. A utopia
enquanto algo conscientemente inatingível, um sonho ainda bruto a ser lapidado,
tem seu valor é claro, mas, somente assim, é absolutamente insuficiente para
que conquistemos corações e mentes rebeldes de todas as gerações para uma causa
perene, de toda a vida. É papel dos socialistas dar concretude e viabilidade científica
para a nossa utopia, para nossa consciência histórica, sob pena de darmos um
salto ao passado, para antes da elaboração por Engels do seu “Do Socialismo Utópico
ao Socialismo Científico”, e sermos “elevados” à condição de novos Fouriers e
Owens em pleno século XXI. Óbvio que esta situação é menos desconfortável que
ser tratado como um “comuna” de estilo militarizado e um tanto desapegado a liberdades
demais, mas tudo aí é desconfortável e, pior, improdutivo e desmobilizador,
quando não desmoralizante.
Esta falta de firmamento desorganiza a luta
política consciente e a capacidade de aglutinação, mesmo que fluida, numa
mínima grande narrativa de real transformação social. Na medida em que não se
tem um “geral” confiável de onde se parta ou se referencie minimamente para um
“particular”, este “particular” de cada um se transforma no “geral” de cada um,
uma fragmentação com um atraente viés libertário, é verdade, mas absolutamente
dispersa, numa perspectiva puramente individualista. Na militância de esquerda
e socialista o resultado é a fragmentação, em nível de torcidas organizadas
doentias, e a fragilidade que assistimos. No cidadão comum, mas também mesmo
entre segmentos organizados na esquerda, isto descamba não raro numa maratona, cada
dia menos envergonhada, para concorrer competitivamente e predatoriamente no
mercado de trabalho, ao gosto do melhor capitalismo senil.
Quem não conhece incontáveis sujeitos com
práticas de esquerda, humanistas, lutadores sociais, defensores de causas
importantes, mas que se dizem pós-ideológicos: nem de esquerda e nem de
direita; voto no candidato, não no partido; partido é tudo igual; a luta dos
índios tá justa, mas os sem-terra são um despropósito, etc. Cresce, nas pessoas
mais críticas e de espírito mais aberto à defesa de uma sociedade mais justa,
um espírito meio anárquico-fisiológico, quando não muito anárquico, como se
percebe com mais força nas juventudes. Ou seja, a falta de “janelas”
pós-capitalistas suficientemente abertas e perceptíveis como tal pela
inteligência humana, acaba por incidir negativamente mesmo na luta mais consciente
anticapitalista. A “classe em si”, distancia-se cada vez mais da “classe para
si”.
David Harvey já apontava em seu clássico “Condição
Pós-moderna” (1989), que a crise do materialismo histórico – já naquela época –
e sua incapacidade de compreensão e apreensão política frente à efervescência desta
condição pós-moderna, levou a disputa entre a esquerda mais atenta e a direita mais
disposta nos anos 1970/80 para o terreno do imaginário, da estética, das
imagens e do simbólico, do poder meramente ideológico, sendo que exclusivamente
neste terreno os conservadores seriam mais consistentes na defesa de suas
posições e nas críticas aos efeitos desta condição no comportamento social, aos
excessos dos anos 60, ao maio Francês de 68. As religiões, por exemplo, propõem
um início, um meio e um fim para a história, uma utopia “realizável” e até
simples de ser entendida e aceita quando se está em meio a um labirinto e sem
outra bússola à mão.
Passados vinte e cinco anos da publicação da
obra prima de Harvey, a crise do materialismo histórico ampliou-se, a crise do
capitalismo também, aprofundando os traços de barbárie, sobretudo no meio
urbano, com crises na mobilidade, na moradia, na segurança pública. Os
comportamentos supostamente “desviantes” denunciados pelos conservadores lá na
década de 1970, só fizeram avançar também. O resultado desta equação no tempo
talvez seja o que assistimos hoje com o fortalecimento de segmentos mais
conservadores polarizando no ambiente político, sugerindo, no caso do Brasil,
pautas de absoluto retrocesso.
Este debate também é fundamental para que
sejamos mais equilibrados e responsáveis nas expectativas e nas cobranças em
relação a governos de esquerda e de orientação socialista que temos tido ou que
virão, e obviamente naquilo que propomos à sociedade como propostas a serem
implementadas pelos socialistas no poder, principalmente nas questões de ordem
econômica. Ter equilíbrio nisto significa não alimentar falsas expectativas que
venham a gerar frustrações por absoluta falta de senso de proporção política. Saber
quais são os limites físicos da ação de governos socialistas e saber quais são
os limites e possibilidades de ação política e no desenvolvimento de condições
objetivas de superação da supremacia da lógica do capital na economia é algo da
maior relevância e urgência.
Por fim, é fundamental levar este debate adiante
e ao seu limite possível para que saibamos nos posicionar com visão mais
estratégica nos enfrentamentos ao qual somos convocados, no Brasil e no mundo,
e também saber localizar nas pautas das burguesias e seus governos o que é de
curto, médio e longo alcance, construindo a nossa pauta de resistência com as
devidas hierarquias e prioridades, com bases político-programáticas amparadas
cientificamente.
III – Limites do desenvolvimento das forças produtivas na
geografia vivida apenas no ambiente analógico-macroscópico do século XX
Frente a esta situação de crise, talvez um
caminho a ser explorado seja assumir que o capitalismo realmente conseguiu movimentar-se,
adaptar-se e submeter aos seus interesses e à sua dinâmica a plenitude do
espaço geográfico no planeta Terra, cujo manejo social no século XX ainda se
baseava nas tecnologias analógicas e na física newtoniana. O planeta Terra,
sentido e explorado nos limites destas tecnologias, ainda seria demasiado grande,
tornando o capitalismo objetivamente invencível pelas forças pós-capitalistas. Os
limites impostos por esta geografia, ou seja, desta infraestrutura no conceito marxiano,
com estes limites tecnológicos, entraram num tipo de sinergia no processo de produção
e circulação de riquezas que acabaram impondo uma espécie de “teto” ao processo
de desenvolvimento de formações econômicas e sociais estruturalmente distintas
ou superiores. Sair do capitalismo seria similar a um “cachorro tentando morder
o próprio rabo”, em velocidade cada vez maior, e perdendo para o cansaço. A questão
é esta: o pós-capitalismo então teria sido uma impossibilidade objetiva no
século XX? Os limites de nossas possibilidades de experiência sensorial no
espaço e no tempo, na geografia como ela se apresentava e se permitia ser
sentida e explorada como prática social no século XX, teria imposto à
humanidade ter que conviver com o capitalismo, mesmo na mais profunda crise?
É uma hipótese a ser levada seriamente em consideração,
caso contrário corremos o risco de apenas fulanizar a história da luta
socialista no século XX, como muitos já o fazem, culpando Mao, Stalin, correndo
o gravíssimo erro de não tirar daí todos os ensinamentos possíveis e
imprescindíveis. Os socialismos reais ou supostamente reais que se debateram e
se debatem ainda hoje, heroicamente, corretamente e felizmente, no árido
movimento anticapitalista, pelo visto não teriam a capacidade de perfurar este
teto, pois no estrito limite da infraestrutura e das relações sociais no espaço
e no tempo dela decorrentes, o desenvolvimento das forças produtivas não encontrou
magnitude tal que as colocassem em contradição definitiva e incontornável com
as relações sociais de produção efetivamente existentes, ou seja, o capitalismo,
seu mercado e sua alienação.
Dito a partir de outro ângulo, as forças
produtivas desenvolvidas no século XX não permitiram uma compressão tal do
espaço-tempo (conceito chave em David Harvey) que tornasse o planeta Terra em
algo microscópico, situação que parece ser uma pré-condição para o
pós-capitalismo vir à superfície, diante da capacidade de adaptação do modo de
produção capitalista a um mundo ainda limitado na prática social cotidiana à proporções
macroscópicas. As lutas que vimos empreendendo, imprescindíveis, na verdade
sempre teriam sido abastecidas pela subjetividade de honestos lutadores
socialistas e do povo, que não exige um protocolo de garantia de saída do modo
de produção capitalista para resistir, ao limite, contra as condições
degradantes impostas inexoravelmente como subproduto do funcionamento do
mercado capitalista cada vez mais predatório e excludente.
IV – O Século XXI e a geografia mundial na era
digital-microscópica
Em
1998, durante o governo do socialista Lionel Jospin na França, uma importante
jornada de debates, patrocinada pelo seu Ministério da Educação, foi coordenada
pelo renomado pensador Edgar Morin. As “Jornadas Temáticas”, como foram idealizadas
por Morin, apresentavam “A Religação dos Saberes” como um grande desafio do
século XXI – vejam que espetacular ação um governo socialista pode e deve levar
adiante. Foram oito jornadas com
renomados pensadores de várias áreas. A sétima jornada, sobre culturas
adolescentes, teve como um dos temas Cybercultura e Infoética. Phillipe Quéau,
cientista responsável pela problematização da temática, levantou um conjunto de
considerações sobre as grandes contradições presentes nesta revolução, sobre
seus impactos culturais, sociais, econômicos e políticos. Em meio a muitas
interrogações, notem a afirmação: estávamos vivendo uma revolução. Citando as
teses do antropólogo francês André Leroi-Gourhan, para quem as grandes etapas
da civilização humana foram marcadas por abstrações radicais: o grito
abstraiu-se na fala; a mão na ferramenta; o oral no escrito (o que não deixa de
dialogar com o método marxiano), Quéau conclui que o real estaria então se
abstraindo no virtual neste exato momento histórico, com impactos na
civilização que poderiam ser tão transformadores quanto a criação do alfabeto.
O
domínio das tecnologias digitais e sua popularização trouxe-nos à internet e a
todo um conjunto de ferramentas/aplicativos de comunicação, linguagem,
interação, informação e processamento de todos esses conteúdos convertidos em
dados matemáticos, informação numérica que pode ser compactada em dispositivos
de armazenamento cada vez maiores em memória e menores em tamanho físico ou
então na nuvem digital. Com a convergência digital inevitável entre informática
e telecomunicações, criou-se assim uma espécie de novo ambiente societário, territórios
informacionais, de troca, de trabalho, de lazer, de estudo, de crimes, enfim. A
geografia do planeta assumiu uma dimensão, finalmente, microscópica. Neil
Armstrong, em 1967, chegou à Lua com um computador de 2 KB (2 mil bytes) de
memória RAM. Hoje não é difícil encontrar um telefone celular com 8 GB (8
bilhões de bytes) de memória. A proporção do salto é esta. Os continentes e
todos os recantos do planeta já estão conectados à velocidade da luz como uma
prática social cotidiana.
A
esta revolução somam-se outras. Apenas quinze anos nos separam daquelas
pertinentes reflexões de Quéau. As redes sociais deram um salto; as impressões
em 3D já são uma realidade. Nos EUA, já há a preocupação por parte da indústria
de armas com a impressão de armas de fogo, baixadas pela internet, em ambientes
domésticos. Em 2013 foi comemorado o primeiro teletransporte de um corpo
macroscópico em distância também macroscópica, feito com sucesso numa
associação entre alemães e chineses. Os avanços permanentes na química fina não
são menos animadores. A compressão do espaço-tempo no planeta para a interação de
dados/pessoas em larga escala na velocidade da luz, aliado a estas tecnologias
assessórias, abre hipóteses que podem ir muito além do que possamos imaginar, na
cultura em geral, no gerenciamento e fiscalização da gestão pública, no
aprimoramento da democracia, enfim. Mas o que nos interessa aqui são os
impactos possíveis na economia política, na consciência social a respeito das
relações sociais de produção.
V – Movimento das
forças produtivas, enfim, em confronto direto com a estrutura econômica do
Capital
Acreditamos
que aqui esteja o ponto mais difícil deste texto, pois não vamos apenas narrar
fatos históricos sistematizados para amparar uma hipótese. Vamos trabalhar sobre
o presente e sobre o futuro, tentando utilizar da melhor forma o modo de
análise marxiano. Além de mais difícil, também é o mais importante, o “pulo do
gato”, o ponto mais alto de todo este debate, pois se localiza neste tópico a
questão da alienação do trabalho no modo de produção capitalista nesta nova
realidade.
Trabalhamos
com a hipótese de que podemos estar vivendo um momento histórico em que a alienação
imposta pelo Capital ao Trabalho, o teto imposto à criatividade humana, o
estranhamento do Trabalho com aquilo que ele próprio cria, a escravização de
sua consciência, ficará à vista como uma fratura exposta, desnudando ao mais
simples dos mortais toda a irracionalidade e os truques do capitalismo em sua
luta por sobrevivência, todo o seu parasitismo e obsolescência.
Istvan
Meszaros nos ajuda a compreender melhor o conceito de alienação em Marx: “(...)
o desenvolvimento da divisão funcional –
em princípio universalmente aplicável - do trabalho constitui a dimensão
horizontal potencialmente libertadora do processo de trabalho do capital.
Porém, essa dimensão é inseparável da divisão vertical/hierárquica do trabalho
no quadro de estrutura de comando do capital. A função da dimensão vertical é
proteger os interesses vitais do sistema assegurando a expansão contínua da
extração do sobre trabalho baseada na exploração máxima praticável da
totalidade do trabalho. Consequentemente, a força estruturante horizontal só
pode se desenvolver até o ponto em que permanece sob o controle firme da dimensão
vertical no horizonte reprodutivo do capital. Isso quer dizer que ela só pode
seguir sua própria dinâmica até o ponto em que os desenvolvimentos produtivos
seguintes permaneçam contidos nos parâmetros dos imperativos do capital. As
exigências de controle de ordenação vertical do capital constituem o momento
supremo na relação entre as duas dimensões. Mas, ao passo que na fase
ascendente do desenvolvimento do sistema as dimensões horizontal e vertical se
complementavam por meio de trocas recíprocas relativamente flexíveis, uma vez
terminada a fase ascendente, o que antes era momento predominante de um
complexo dialético se transforma numa disruptiva unilateral, que traz em si
graves limitações ao desenvolvimento produtivo (...)”. Mesmo não observando
a importância da compressão do espaço-tempo no movimento das forças produtivas
e na produção dialética de uma consciência social que se choque com a dinâmica alienante
do Capital, o raciocínio de Meszaros, intérprete das obras de Marx, é de uma precisão
metodológica cirúrgica, como esperamos mostrar.
A
rede mundial de computadores, a internet, como está amplamente popularizada, se
estabelece exatamente numa estrutura vertical, numa relação “cliente <> servidor
(máquina central)”. Toda vez que um usuário quiser baixar um arquivo que está
na rede, por exemplo, terá que “pedir autorização” para o seu servidor, que
obviamente é uma empresa capitalista. O servidor acaba funcionando como uma
espécie de pedágio ou posto de fiscalização, que diz o que pode e o que não pode
ser disponibilizado gratuitamente e aquilo que só será disponibilizado mediante
desembolso financeiro. Qualquer semelhança com uma espécie de feudo medieval encravado
na geografia digital, impedindo a passagem do progresso, não é mera
coincidência. Esta estrutura vertical torna-se menos produtiva, mais pesada,
menos segura e agrega menos qualidade em serviços procurados por
clientes/usuários na medida em que já é possível estabelecer-se amplas redes
horizontais, mais rápidas, mais leves, mais seguras e, principalmente,
totalmente democráticas e dependentes desta democracia.
É o
que acontece com a arquitetura P2P (Peer to Peer), ou Ponto a Ponto, uma rede
que se sobrepõe horizontalmente à relação vertical, como um viaduto, permitindo
que todos os clientes/usuários relacionem-se diretamente uns com os outros, sem
servidores. Todos são ao mesmo tempo clientes e servidores, compartilhando
tudo, de arquivos a memórias. A colaboração e a solidariedade são as bases da
ética aí construída, não há propriedade privada possível, tudo é coletivo, não
por uma questão de natureza moral, mas porque assim se agrega mais
produtividade e qualidade ao “Commons”,
ou “bem comum”, que os levou até ali. Neste universo, ainda embrionário, a
sociedade e seus indivíduos livremente associados, querem e podem administrar
não a fraude da escassez, mas a abundância daquilo que necessitam. De cada um
conforme suas potencialidades, para cada um conforme suas necessidades, com
plena liberdade.
Michel Bauwens, criador da Fundação
P2P, explica melhor do que se trata, em entrevista concedida ao site Cultura
Digital: "(...) O commons e o p2p são apenas
aspectos diferentes do mesmo fenômeno, o commons é o objeto que a dinâmica p2p
está construindo, e o p2p ocorre onde há bens comuns. Lembre-se, eu não uso o
termo p2p em um sentido puramente tecnológico, mas em um sentido sociológico,
como um tipo de relacionamento (...)”
“(...) o movimento p2p
tem um papel histórico muito importante a desempenhar, mas que é bastante
difícil quantificar isso. Primeiro, o que queremos dizer quando falamos de um
movimento p2p? O conjunto de causas subjacentes está ligado à horizontalização
das relações humanas que é viabilizada pelas tecnologias p2p, entendida no
sentido amplo de permitir a agregação de indivíduos livres em torno de valores
compartilhados ou na criação de valor comum. Este é, naturalmente, uma grande
mudança social. Poderíamos argumentar que uma emergente vanguarda
sócio-cultural está ativamente construindo novas formas de vida, novas práticas
sociais e novas instituições humanas (...). Em todo o mundo estamos vendo
emergir comunidades que estão desenvolvendo novas práticas sociais que são
informadas pelo paradigma p2p. Em um outro nível esta é também uma revolução
ética, que registra o crescimento de valores fundamentais tais como abertura
(openness, a qualidade de ser aberto) e liberdade em relação às ‘entradas’
(inputs) compartilhadas em processos de produção entre pares; participação e
inclusividade como elementos básicos do processo de cooperação; e uma
orientação ao ‘commons’ (distribuição universal) na gestão das saídas (outputs)
do processo. Economicamente, por exemplo, um estudo recente estimou que o setor
de conteúdo aberto nos EUA iria alcançar um sexto do
PIB. Finalmente, existem as novas expressões políticas. Eu considero
as praças ocupadas na Europa como expressões desta emergente mentalidade p2p.
Você poderia dizer que o movimento tem duas alas, uma ala construtiva de
pessoas desenvolvendo novos instrumentos e práticas, como por exemplo descrito
no livro de Chris Carlsson, ‘Nowtopia‘,
e uma ala mais ativa de resistência ao neoliberalismo, que está buscando
formular novas maneiras de conceber as mudanças sociais, e que não são cópias
carbono das abordagens da velha esquerda. No entanto, é importante ressaltar
que este movimento está ainda em uma fase precoce de emergência, e não em nível
de paridade com o mundo neoliberal mainstream (...).”.
Chega
a impressionar como os termos e projeções visuais usados por Marx e Meszaros
são exatamente os mesmos em que se dá a arquitetura do conflito incontornável entre
a dimensão horizontal libertária de produção e criatividade e o filtro
alienante que impede a progressão, presente na dimensão vertical.
Em nosso sentir, está
um curso uma revolução pós-capitalista, ou disruptiva unilateral para usar o
termo de Meszaros. Ela não se dá pela via das relações analógico-macroscópicas;
não se trata de uma reação de maiorias excluídas, exploradas e oprimidas com
força tal para subverter a ordem hegemônica do capital. Sobre isto, a esquerda
socialista mundial já viveu melhores momentos e não seria a chegada aos portões
da barbárie ou uma suposta crise civilizacional – principalmente por conta da
crise ambiental - que geraria uma reação com eficácia. O proletariado
revolucionário de Marx migrou das fábricas para a geografia digital.
A revolução pós-capitalista que tratamos aqui, seguindo as
leis do materialismo histórico fundado por Marx e Engels, só poderia mesmo ser “anunciada”
por um sujeito social cujo interesse maior não é apossar-se do mundo velho, sobreviver
nos/dos escombros de um mundo ainda predominantemente analógico na sua face
produtiva, mas sim de um mundo novo, que brota naturalmente e dialeticamente de
sua atividade laboral, que se vê impedida de progredir pelas forças do atraso
do Capital. Esse sujeito, por excelência, tem que ser o mais qualificado, o
mais produtivo, o mais criativo, precisa ser o que de mais elevado a cultura
sob o capitalismo conseguiu produzir, como previu Marx, de forma que ele
próprio se torne portador, porta-voz, artífice e principal defensor deste novo
mundo, do futuro, incapaz de conviver com a alienação que o Capital lhe impõe. Aquela
nação mais desenvolvida no capitalismo, apta a ser o palco deste teatro revolucionário,
é uma aldeia global digitalizada.
VI – A “mão invisível”
e o “espírito do capitalismo” migrando para um metabolismo econômico e social colaborativo
em redes horizontais.
Adam
Smith e Max Weber, sabedores ou não do uso que seria feito de suas produções
intelectuais, estão entre os pensadores que mais profundamente alicerçaram
ideologicamente o capitalismo e seu mercado. A teoria da “Mão Invisível”, o laissez faire, o “Espírito ‘democrático’
do Capitalismo”, supostos princípios de liberdade e democracia, enfim, sempre
se articularam fortemente com o liberalismo econômico. As condições de
liberdade e a democracia, supostamente inatas ao ser, confeririam então ao
capitalismo uma espécie de status de naturalidade e inclusive de vitaliciedade.
Como
se depreende dos tópicos anteriores deste texto, foi esta superestrutura ideológica,
sua subjetividade, sua ética, este espírito e este impulso natural em busca da
satisfação de interesses, que permitiu ao capitalismo suas metamorfoses e o
desenvolvimento sem freios aparentes das forças produtivas e da criatividade
humana no século XX; e que deu ao modo de produção capitalista uma autoridade
moral e intelectual que se revestiu de hegemonia política - para usar um
conceito de Gramsci - até os nossos dias.
Diante
das hipótese que levantamos, como ficam os alicerces lançados por Smith e
Weber? Ficam obsoletos e vão perdendo pertinência como acreditamos que vá
acontecer com o modo de produção capitalista? Ou deslocam suas linhas de força
para outro plano, indo sustentar, moral e intelectualmente, novos metabolismos
econômico-sociais, deixando o modo de produção capitalista seminu, desprovido
de razão e consequentemente de autoridade?
Parece-nos
que a segunda opção é a mais plausível e isto é de absoluta relevância, pois a
disputa de poder político é antes de tudo uma disputa por hegemonia, ou seja,
pela pacificação de uma maioria ideológica na consciência social, uma hegemonia
da liberdade e da democracia, algo muito mais belo e dialogante com nosso tempo
do que Ditadura do Proletariado, um conceito mal compreendido e caricaturado, é
verdade, mas que nem por isso lhe tira a simbologia de uma carranca assustadora.
VII –
Pós-capitalismo é igual a socialismo?
Como afirma Michel
Bauwens, do ponto de vista das possibilidades no universo da economia, o real
abstraído no virtual ainda é bastante embrionário, mas é absolutamente
previsível para os que se utilizam do método marxiano que aí brotam novos
burgos, de onde sairão os milionários de uma nova riqueza: o conhecimento, a “polpa”
do valor-trabalho, origem primeira da riqueza. A esquerda socialista precisa
estudar as dinâmicas deste processo. Parece estar em relevo que este
pós-capitalismo conjugará uma formação econômica híbrida, sem hegemonia do
capitalismo, claro – o que não significa a extinção desta formação no curto
prazo -, mas com cooperativismo/colaboracionismo/solidarismo, formas
coletivizadas, formas estatais, anarco-liberais, com muito empreendedorismo
individual, pois, até onde nossa abstração alcança, não vemos como haver ricos,
detentores de capital, nestas relações sociais de produção, pois não haverá
acumulação de capital em massa. Talvez o capitalismo apodrecido por tanto tempo
no século XX tenha represado tantas forças produtivas e criatividade que esta
hibridez seja uma necessidade objetiva do novo “sistema” que poderá brotar.
VIII – Algumas palavras sobre
ativismo quântico
Colocamos
propositadamente no título deste texto o termo “infraestrutura quântica”, mesmo
sabendo que falaríamos quase nada sobre isto, mas para deixar claro nossa convicção
na ortodoxia do método marxista. Entendemos que os processos analógicos estão
para os processos digitais assim como a dimensão da física newtoniana está para
a física quântica. Seguindo as leis do movimento, da dialética, é razoável
pensar que, assim como as tecnologias analógicas foram superadas pelas
digitais, também esta será superada. Desde o início do século XX a energia quântica
ganhou status de ciência. Suas características, porém, escapam ao conceito mais
rigoroso de técnica científica como a cultura ocidental a concebe, sendo suas
práticas ainda confinadas ao universo do exótico e do alternativo, notadamente
na medicina e outras áreas que atuam sobre o corpo humano. Cientistas respeitados
no mundo, como o físico nuclear indiano Amit Goswami, tem feito um largo
esforço para difundir o ativismo quântico que, grosso modo, contribui de forma
extraordinária para diminuir sensivelmente a distância que separa a ciência da
fé religiosa, explicando cientificamente fenômenos reais até então
inexplicáveis. Este tema e esta dinâmica não podem escapar à atenção dos socialistas,
que devem ter em sua prática política o compromisso com o desenvolvimento
destes conhecimentos, ainda mais quando se torna cada dia mais previsível que
talvez uma das últimas trincheiras do Capital seja exatamente na área das
ciências médicas e biomédicas.
IX – O que
é o socialismo no século XXI?
O método marxiano não pode servir
apenas para constatarmos, a posteriori, que ele é eficaz. Ele deve ser
utilizado para orientar a ação do movimento socialista, prevendo o devir. Este
é o objetivo supremo da ciência, apreender os fenômenos para que possamos
prevê-los e anteciparmo-nos a eles, preparando-nos para recebê-los da melhor
forma, ou influindo sobre eles, sobre seus ritmos, sobre seus desdobramentos,
ou mesmo evitando que aconteçam, quando for conveniente e necessário ao bem
comum.
Como afirmamos na apresentação
deste texto, já há alguns anos que estamos observando estes fenômenos e também
o fato de haver uma desconexão entre a luta anticapitalista e a luta
pós-capitalista. A primeira se dá no campo macroscópico, a segunda no
microscópico. A primeira é resistência, é anti, e este é seu limite
histórico-geográfico, objetivo; a segunda é superação, é pós, e seu limite hoje
são barreiras apenas subjetivas, impostas pelos interesses de lucro do Capital.
O desafio da esquerda socialista nesta
nova era é saber costurar estas dinâmicas para combater o inimigo comum: a
alienação do Capital, que impede que a satisfação plena das necessidades
humanas, no mundo analógico e digital, seja alcançada através do exercício da
liberdade criativa e sem limites nas relações sociais de produção orientada
pelo bem comum, ou pelo comunismo, como queiram.
Lênin, após o triunfo da
Revolução Russa, foi perguntado sobre o que era socialismo para ele. Sua
resposta: “Socialismo = Soviets + Eletricidade”. Se nos fosse perguntado o que
é o socialismo ou uma proposta socialista hoje, responderíamos: “Socialismo =
democracia e liberdade política radical + inclusão digital indiscriminada e horizontalizada
em banda larga”. Com um pouco de poesia: “o socialismo é o caminho da desalienação que
liberta e nos enche o peito de vontade de viver o futuro”.
Edilson Silva, 44, é
técnico eletromecânico, estudou Economia na UFPE, não chegando a concluir o
curso. É graduando em Direito e há mais de 20 anos dedica-se ao movimento
sindical, como sindicalista e assessor de várias entidades. É fundador e presidente do
PSOL-PE e Secretário Geral Nacional do mesmo partido, tendo sido candidato a
governador de Pernambuco em duas ocasiões, 2006 e 2010, e também à prefeitura
do Recife em 2008. Em 2012 foi candidato a vereador do Recife, sendo o 3º mais votado da cidade,
não assumindo uma cadeira por deficiência do quociente eleitoral. Todas as candidaturas pelo PSOL.