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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Diploma para jornalistas é exigência da cidadania


Por Edilson Silva

Tenho muitos amigos jornalistas e relaciono-me com muitos deles, sobretudo por conta de minha militância política. Além de relacionar-me com eles, relaciono-me também com a imprensa. Estas relações nos ensinam muito. A principal lição é que os grandes veículos de comunicação, que são “a imprensa”, são empresas, com donos, acionistas, sócios, patrões, que mantém seu foco no lucro dos negócios.

Sempre fui muito cobrado sobre a questão da exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Confesso que sempre apoiei a causa da exigência do diploma, mas com uma pulga atrás da orelha: esta exigência foi uma imposição do regime de exceção no Brasil. O exercício do jornalismo era livre e desregulamentado até antes do golpe de 1964. Após isto, com o objetivo de calar a rebeldia e a suposta subversão, instituiu-se a exigência do diploma. Pobre Pasquim!

Acontece que a atual dinâmica da imprensa vai resolvendo este meu dilema. É sabido que a bandeira da não exigência de diploma é patrocinada pelos grandes patrões das comunicações. Estes não vêem os jornalistas como tal, mas como “papagaios”, logo, porquê diploma? Mais que isso, um “papagaio” é encontrado aos montes em qualquer esquina, logo a lei do mercado se encarrega de transformar a profissão em “alface murcha” num fim de feira, barateando o custo variável final no processo de “produção jornalística”. Contratam uns editorialistas para dar “a linha” e o resto é resto. Capitalismo básico.

Lamentavelmente, em regra, a relação capital x trabalho na grande imprensa tem desconfigurado o papel da imprensa e do jornalismo. O bom jornalismo e os bons jornalistas vão localizando-se nas bordas da comunicação e felizmente a blogosfera e redes sociais ajudam muito nisto. O simples fato da possibilidade de contratação de “jornalistas” sem diploma no mercado pelas grandes empresas de comunicação já cria um ambiente de terror que obviamente não incide somente nos salários e nas condições de trabalho, mas também na qualidade da notícia.

Não tem jeito: a existência determina a consciência. Tenho sido um crítico ácido desta situação. Este jornalismo e estes jornalistas, como estão caminhando, não servem à comunicação cidadã, à informação verdadeira como uma das dimensões inescapáveis do direito humano fundamental à comunicação. Esta imprensa, como se encontra, é o outro lado da moeda da velha política tão criticada nas ruas e praças de nosso país. E o pior: pousando de consciência crítica da sociedade.

É por isso que folguei ao saber da aprovação em primeiro turno no Senado da PEC 33/2009, que obriga a diplomação para jornalistas. Não há democracia em evolução sem comunicação libertária, e esta não existe se os que produzem a informação não estiverem minimamente protegidos contra os interesses do grande capital. O diploma de jornalista, por óbvio, não resolve todos os problemas, mas estanca minimamente uma hemorragia por onde está esvaindo-se não só os interesses corporativos de uma categoria, mas a nossa democracia em construção.

Presidente do PSOL-PE


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

SEMAS: o silêncio anti-republicano do secretário Sergio Xavier


Por Edilson Silva

Há poucas semanas postamos aqui no blog do Jamildo uma cobrança em relação à suposta fraude em seleção pública realizada pela SEMAS – Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, cujo titular é o secretário Sergio Xavier, do PV. Na oportunidade mostramos favorecimentos presentes num processo de seleção simplificada e cobramos do secretário explicações.

As explicações não foram a público, mas o próprio secretário me ligou e tentou explicar e justificar as flagrantes contradições no processo seletivo. Pediu-me que encaminhasse à secretaria as irregularidades que estávamos percebendo no certame. Nestas oportunidades colocamos ao secretário que nossa busca do espaço público para exercer nossa militância política, no caso o combate pela ética na gestão pública, se dá em base aos princípios da transparência a que a atividade pública, tanto de quem está governando, quanto de quem está na oposição, devem estar submetidos.

Como sugeriu o secretário, protocolei, na condição de presidente do PSOL e membro de uma oposição popular que fiscaliza o governo e busca fazer sua parte no controle social, um pedido formal de informações. Solicitamos informações sobre a natureza dos cargos e funções que estavam sendo preenchidos com a seleção pública; os instrumentos normativos que davam lastro legal para a seleção; os currículos dos candidatos a determinadas funções e cargos, para que, junto aos próprios candidatos prejudicados que nos procuraram e com o Ministério Público se fosse o caso, pudéssemos averiguar minimamente se os critérios de seleção, recursos e revisão eram aceitáveis.

Neste curto espaço de tempo, o secretário não veio a público explicar os acontecimentos estranhos à ética existentes na pasta em que é titular. Coincidentemente, apareceu foi num jornal de grande circulação, dando uma entrevista enorme em que tratava de tudo, menos das irregularidades em sua pasta. O jornalista que o entrevistou, talvez mal informado, não se prestou a fazer a pergunta incômoda. Alguém de mente mais ousada poderia sugerir que o secretário plantou a entrevista para construir uma “agenda positiva” e assim diminuir o impacto negativo da suposta fraude em sua secretaria.

Ainda neste intervalo de tempo, após a prudencial entrevista de página inteira dada pelo secretário, o Diário Oficial do Estado, na sua edição digital de 15 de novembro (um feriado), publicou a desconsideração dos resultados da seleção pública que denunciamos como suspeita de estar fraudada. A SEMAS e a SAD, segundo o Diário Oficial, reavaliarão os critérios de aprovação. Esta decisão não deixa dúvidas de que havia sim irregularidades e que estas seriam facilmente verificadas por ação do Ministério Público que já estávamos a encaminhar.

Mas há mais o que se cobrar em relação a esta secretaria. Quando a SEMAS foi criada, os ocupantes foram agraciados com 52 cargos de confiança. O discurso público era que estes iriam estruturar com o tempo uma secretaria com estabilidade para pensar estrategicamente a questão ambiental na gestão pública estadual. Contudo, as 73 vagas que foram disponibilizadas na primeira oportunidade de estruturação da SEMAS são precárias, contratos temporários, ou seja, não se está estruturando um serviço público pleno e perene na pasta, mas algo provisório, refém dos humores dos governos de plantão, que pode muito facilmente se transformar em mais um cabide de empregos para os amigos do poder.

Estamos ainda a aguardar a resposta oficial da SEMAS sobre nosso pedido de informações. Por enquanto já percebemos que nosso acompanhamento gerou um recuo no que se configuraria descaradamente como mais uma fraude no serviço público.

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Assumir a derrota


Por Marina Silva, da Folha de São Paulo

Na quarta-feira, na Comissão de Meio Ambiente do Senado, ocorreu uma das derrotas mais sofridas que a luta socioambiental em defesa do desenvolvimento sustentável poderia viver.
A sessão, que deveria tratar com tempo e profundidade o mérito do projeto de lei que propõe criar um novo Código Florestal, transformou-se em um exemplo perfeito do que, sem medo de errar, pode ser chamada de velha política.
O indicador dessa senilidade política veio na forma de argumentos apelativos que tentavam convencer os "derrotados" de que deveriam alargar o sorriso, disfarçar a indignação e posar para a foto com os  vencedores", sem lhes estragar o realce da moldura.
Afinal, todos, como no episódio do vaidoso rei que estava nu, deveriam repetir que o relatório Viana/Luiz Henrique havia conseguido tecer um texto que, finalmente, faria o impossível: aumentar a proteção de rios, encostas e florestas ao mesmo tempo em que acaba com a obrigatoriedade de recuperação das áreas de preservação permanente e das reservas florestais na maioria das propriedades privadas, com anistia de multas de desmatamentos ilegais.
Durante toda a sessão, o tom era de "dever cumprido", de "conquista histórica", de "consenso entre ruralistas, cientistas, governo e ambientalistas". Mas, na verdade, o que ocorreu mesmo foi
um acordo entre poucos: governo e ruralistas, mediados pelos senadores Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), Jorge Viana (PT-AC), Luiz Henrique (PMDB-SC), Kátia Abreu (PSD-TO) e pela ministra do Meio Ambiente, Izabela Teixeira.
Agora, o que se vê são todos os espaços sendo usados para fazer grudar na história uma espécie de adesivo verde, um tapume para esconder os escombros da legislação ambiental, que começa a ruir na derrocada do velho guardião das florestas.
Nada mais característico da velha política do que conformar-se em apenas parecer. Nesse caso, bastaria aos socioambientalistas deixar prevalecer a tese de que -apesar dos retrocessos- também saíram vencedores. Afinal de contas, também fazem parte do grande consenso. Poderiam nos colocar na foto de todos os jornais esverdeando a moldura, mas não seria a verdade.
As mais de 200 emendas apresentadas ao relator Jorge Viana demonstram que o único consenso é que não havia consenso algum. E isso, por si só, deveria fazer com que o processo de tramitação do projeto tivesse mais tempo, para tentar construir soluções mediadas, e não aplicar na lei aquilo que tanto se faz na floresta: o correntão!
Sem essa mediação, vão empurrar para a berlinda o compromisso assumido publicamente no segundo turno pela então candidata Dilma.

MARINA SILVA escreve sempre às sextas para a Folha de SP

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

As lições da Europa

Boaventura de Sousa Santos, da Folha de São Paulo

"Mercados financeiros nunca vão recompensar os países pelos sacrifícios que fazem, pois isso alimenta os lucros do investimento especulativo"

A Europa está assombrada pelo fantasma da exaustão histórica. Depois de durante cinco séculos ter atribuído a si a missão de ensinar o mundo, parece ter pouco a ensinar e, o que é mais trágico, parece não ter capacidade para aprender com a experiência do mundo.
O cantinho europeu, apesar de ser cada vez menor no contexto mundial, não consegue compreender o mundo senão por meio de conceitos gerais e princípios universais e nem sequer se dá conta de que a sua própria fidelidade a eles é hoje uma miragem.
Partindo da ideia de que a compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão europeia do mundo, as dificuldades que a Europa passa podem ser um campo de aprendizagem fértil para o mundo. Eis as principais lições.
Primeira lição: a ideia de que as crises são oportunidades é uma verdade ambígua, porque as oportunidades vão em direções opostas e são aproveitadas por quem melhor se prepara antes da crise.
A direita usou a crise para aplicar a "doutrina de choque" das privatizações e da destruição do Estado social (privatização da educação e da saúde). Não tinha conseguido fazê-lo por via democrática, mas foi preparando a opinião pública para a ideia de que não há alternativa ao senso comum neoliberal.
A esquerda, pelo contrário, deixou-se desarmar por esse senso comum, e por isso não pôde aproveitar a crise para mostrar o fracasso do neoliberalismo (tanto pela estagnação como pela injustiça) e propor uma alternativa pós-neoliberal.
O movimento ecológico, que era forte, deixou-se bloquear pelo slogan do crescimento, mesmo sabendo que esse crescimento é insustentável, perdendo, assim, a oportunidade que lhe foi dada pela reunião da Rio+20 do próximo ano.
Segunda lição: a liberalização do comércio é uma ilusão produtiva para os países mais desenvolvidos. Para ser justo, o comércio deve assentar-se em acordos regionais amplos, que incluam políticas industriais conjuntas e a busca de equilíbrios comerciais no interior da região.
A Alemanha, que tanto exporta para a Europa, deverá importar mais da Europa? Para isso ser possível é preciso uma política aduaneira e de preferências comerciais regionais, assim como uma refundação da Organização Mundial do Comércio.
Aliás, a OMC já hoje é um cadáver adiado, no sentido de começar a construir o modelo de cooperação internacional do futuro: acordos globais e regionais que, cada vez mais e sempre na medida do possível, façam com que os lugares de consumo coincidam com os lugares de produção.
Terceira lição: os mercados financeiros, dominados como estão pela especulação, nunca recompensarão os países pelos sacrifícios feitos, já que não reconhecer a suficiência destes é o que alimenta o lucro do investimento especulativo. Sem domar as dinâmicas especulativas, o desastre social ocorre tanto pela via da obediência como pela via da desobediência aos mercados.
Quarta lição: a democracia pode desaparecer gradualmente e sem ser por golpe de Estado. Vários países da Europa vivem uma situação de suspensão constitucional, um novo tipo de Estado de exceção que não visa perigosos terroristas, mas, sim, os cidadãos comuns, os seus salários e as suas pensões.
A substituição de Berlusconi (para a qual havia boas razões democráticas) foi decidida pelo Banco Central Europeu.
O estatuto dos Bancos Centrais, criado para torná-los independentes da política, acabou por tornar a política dependente deles.
A democracia, depois de parcialmente conquistada, pode ser gradualmente esventrada pela corrupção, pela mediocridade e pusilanimidade dos dirigentes e pela tecnocracia em representação do capital financeiro, a quem sempre serviu.


BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português, é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A Polícia Militar na USP

Por PAULO ARANTES, MARCUS ORIONE E JORGE LUIZ SOUTO MAIOR, da Folha de São Paulo

Com a PM no campus, há a presença física que sempre se coloca à disposição para eventual repressão de atos ligados à expressão de ideias

Todos concordam que, no Estado de Direito, ninguém está acima da lei. Com base nessa premissa, não é possível conceber-se espaços isentos do controle de legalidade estatal. Por que, então, se essa é uma premissa razoável, defender que a Polícia Militar não possa fincar raízes na USP para o controle da legalidade? Por que ela pode estar em outros espaços públicos e não se pode conceber sua presença ali?

Primeiro, para que a legalidade seja observada, não basta a presença da PM, sendo que há outros meios mais eficazes para a sua preservação -seja na USP, seja em qualquer lugar. Aliás, poderíamos dizer que o ideal é que a legalidade, cujos instrumentos decorram de processos efetivamente democráticos, não dependa de qualquer tipo de fiscalização para ser respeitada.

Segundo, e mais relevante, para que uma universidade pública tenha importância para um país, faz-se indispensável que seja um centro de excelência em geração de ideias. Para que elas possam ser geradas, a liberdade é fundamental.

A partir daí, os pensamentos gestados se transformam em atos, que podem ser elaborados também no plano político.

A presença constante de qualquer agente com potencialidade repressiva, e que possa ser acionado por um poder central, certamente é elemento inibidor da gestação de ideias e, por consequência, da força motriz da universidade e de sua relevância para a sociedade.

O limite é tênue entre o crime comum e o político; entre a criminalização de condutas e a de ideias.

Um agente como a Polícia Militar certamente não está, mesmo por não ser essa a sua função no Estado de Direito, habilitado a fazer essa distinção. Somente se põe a executar a ordem superior. A reitoria pode, sob a alegação de suposto interesse público, de ofício, acionar tais meios repressivos.

Pode fazê-lo também se a PM estiver fora do campus universitário? Óbvio que sim. Mas, com certeza, mantendo-se no local um corpo militar, há a presença física que sempre se coloca, não somente de forma simbólica, à disposição para eventual repressão de atos ligados à livre expressão de ideias.

Nem se diga que a criminalização das ideias e das movimentações sociais geradas têm sido, por exemplo, uma exceção na atual gestão.

Atualmente, cinco dirigentes sindicais encontram-se em vias de demissão, e 25 alunos estão às portas da expulsão. Por "coincidência", todos se envolveram em atos políticos de reivindicação.

Ora, um campus militarizado, certamente, é extremamente daninho ao cumprimento das finalidades que são necessárias à construção de uma sociedade em que imperem a igualdade e a justiça.

Afinal, ensina a história, coturno e liberdade de expressão nunca caminharam juntos.

No entanto, resta a pergunta: como fazer para que aquele espaço não fique imune à responsabilização dos crimes comuns? Certamente, a ausência da PM não implica impunidade naquele espaço.

Inicialmente, porque ela sempre pode ser acionada, como se dá com qualquer cidadão que, na cidade de São Paulo, não tem uma viatura no seu bairro.

Por outro lado, não é crível que aquela que chamam de maior universidade da América Latina não possa, a partir de estudos dos maiores especialistas nas diversas áreas do conhecimento, várias ligadas à segurança pública, resolver o seu próprio problema de segurança.

Aliás, seria interessante que o fizessem. Assim, talvez não apenas o problema da militarização no espaço destinado à produção de ideias estaria resolvido. Quem sabe algumas das soluções pudessem ser revertidas para a sociedade que, como um todo, vive também assolada pela crescente militarização, sem que isso represente um efetivo aumento da sensação de segurança.

PAULO ARANTES é professor da FFLCH-USP.

MARCUS ORIONE GONÇALVES CORREIA é livre-docente e professor de direito previdenciário da Faculdade de Direito da USP.

JORGE LUIZ SOUTO MAIOR é professor associado da Faculdade de Direito da USP.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

PSOL: partido necessário na construção de uma nova política

Por Edilson Silva

Já virou lugar comum falar-se nestes tempos de uma combinação de crises: econômica, ambiental, social, política, energética, ética. O filósofo e professor da USP Wladimir Safatle, em excelente texto escrito por estes dias em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, e que reproduzi em meu blog (http://edilsonpsol.blogspot.com/2011/11/verdadeira-crise.html ), nos traz mais uma visão ou dimensão (ou seria consequência?) das crises simultâneas que vivemos: a crise psicológica global. Safatle nos remete aos fenômenos do Renascimento e da Reforma Protestante para dar-nos uma melhor noção da potencial profundidade da crise pela qual estamos passando.

Sobre este momento histórico, está cada dia mais nítido que o componente econômico desta verdadeira crise civilizacional é um dos elementos propulsores centrais do fenômeno: da primavera árabe, passando pelos enfrentamentos sociais na Europa e chegando ao movimento “ocupar Wall Street”, nos Estados Unidos. A síntese mais concreta destas mobilizações populares, contudo, traz uma fusão, mesmo que ainda fluida, da crítica econômica com a crítica política: bem estar social e estabilidade econômica são incompatíveis com uma falsa democracia e falta de liberdade. A conclusão que vai se afirmando cada dia com mais força é que a supremacia do mercado capitalista não dá conta de equilibrar estes valores, abrindo então uma brutal crise de paradigmas. O “muro de Berlim” imaginário do capitalismo, que já balançava há décadas, parece mesmo ter ido ao chão.

É dentro desta moldura que no Brasil o ainda minoritário PSOL – Partido Socialismo e Liberdade -, vai se firmando como parte fundamental de uma construção alternativa às velhas formas de se fazer política. O PSOL é um partido jovem, com apenas seis anos de legalização, mas que já se apresenta para a sociedade como uma semente saudável plantada no terreno árido e perverso da política brasileira, buscando com coragem e coerência dialogar com a nova consciência social que vai se forjando gradativamente na sociedade globalizada que vivemos.

Certamente é por conta desta construção que recentemente os poucos e aguerridos parlamentares federais do PSOL foram destaque no prêmio concedido pelo Congresso em Foco. Imprensa especializada e público, através da internet, deram ao deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) a distinção de melhor deputado de 2011 – prêmio que ele já havia alcançado em 2010. Chico foi seguido de perto pelo também deputado fluminense Jean Wyllys (PSOL-RJ), que ficou em segundo lugar. Em quarto lugar veio o também psolista Ivan Valente (PSOL-SP). Detalhe: o PSOL só tem três deputados federais. No senado, o jovem senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) também ficou entre os melhores e mais atuantes.

Também recentemente o deputado estadual do PSOL-RJ, Marcelo Freixo, ganhou mais notoriedade nacional por sua luta contra as milícias que atuam no Rio de Janeiro. Presidente da CPI das Milícias na ALERJ (Assembleia Legislativa do RJ), seu trabalho levou dezenas de bandidos de farda e sem farda para a cadeia. Por conta de sua luta, está ameaçado de morte há muito tempo e vive 24 horas por dia cercado de seguranças. Como as ameaças intensificaram-se nas últimas semanas, está se transferindo temporariamente para a Europa, protegido pela Anistia Internacional, até que sua segurança e de sua família sejam reorganizadas.

Em maior ou menor escala de visibilidade, a militância do PSOL se faz presente no cotidiano da resistência do povo brasileiro. Seja no Congresso Nacional, seja em Assembleias Legislativas, como a deputada Janira Rocha no Rio de Janeiro, em Câmaras de Vereadores, como a aguerrida e incansável Heloisa Helena em Maceió, ou na luta popular de nossa gente, no movimento sindical, estudantil, junto à juventude, em defesa da educação, da saúde, do meio ambiente, contra a corrupção, em defesa de uma nova democracia. Onde tem alguma luta justa de nossa gente, pode ter certeza, ali está o PSOL, se não diretamente, mas prestando sua irrestrita solidariedade e apostando suas energias na construção de uma sociedade baseada nos valores e princípios socialistas.

É por isso que dizemos que o PSOL é um partido necessário na política brasileira, ao mesmo tempo em que afirmamos que as expectativas dos setores que se movimentam na sociedade em busca de alternativas para os graves problemas sociais e ambientais que vivemos, não serão supridas única e exclusivamente no universo da luta partidária e muito menos terão num único partido político seu leito natural. O desafio que está colocado nesta quadra histórica é a construção de frentes sociais e políticas baseadas em princípios e valores, como a ética, o humanismo, o planejamento solidário, liberdade, igualdade e democracia. O PSOL é um partido entusiasta de que podemos sim construir um futuro melhor que o presente.

Presidente do PSOL-PE e membro da sua Direção Executiva Nacional

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Europa impõe neocolonialismo à Grécia, diz economista

Entrevista à Eleonora Lucena, na Folha de São Paulo de 07/11

A queda de George Papandreou é uma vitória do mercado financeiro, que conseguiu enterrar a ideia --mal encaminhada - do plebiscito na Grécia. O pacote de resgate imposto pela Europa ao país é "uma forma de neocolonalismo".

A análise é do economista chileno Gabriel Palma, 64, professor da Universidade de Cambridge (Reino Unido). "Alemanha e França pensam que têm o direito de decidir o que acontece na Grécia depois do resgate. A falta de democracia é absoluta", diz.

Especializado em econometria e desenvolvimento, ele avalia que "o pior fantasma que há na Europa é a Itália".

Palma critica o que chama de "passividade da América Latina" em relação ao crescimento puxado pelo preço excepcional das commodities e por fluxos de capitais externos. A Argentina é exceção, pois "está tomando medidas mais agressivas, mais pragmáticas".

Ataca a política de altos juros brasileira, que classifica como "monetarismo do século 19", e define a desindustrialização do país como um processo de "vandalismo econômico".

FOLHA - O que acontece na Grécia?

GABRIEL PALMA - O que acorreu na América Latina muitas vezes. Foi criada uma crise e os que pagam pela crise são outros. A Grécia cortou 25% da educação pública, 25% da saúde pública, deixou a habitação a zero. Nenhum desses setores foi causa da crise. Uns se beneficiaram e são outros os que estão pagando. Na Grécia, entre 2002 e 2007, o valor do estoque de bens financeiros (bolsa, ativos bancários, bônus públicos e privados) triplicou em termos reais. Cresceram seis vezes mais rápido que o PIB. A mentalidade moderna fala que o preço do ativo financeiro sempre reflete os fundamentos da economia. Obviamente não é isso.

Por que houve essa reação tão forte contra o plebiscito, agora descartado?

Na Irlanda o governo anterior ficou com todas as perdas do sistema privado. Fez sem perguntar a ninguém. Todos esses planos de resgate têm um elemento muito antidemocrático. Passam a dívida privada para a pública sem perguntar a ninguém. Chamar um referendo para o resgate não tinha muito sentido porque não era o ponto fundamental, que é se a Grécia segue no euro.

Na Islândia houve dois plebiscitos sobre a socialização das perdas. Se se faz um plebiscito o mais provável é que se diga não. Que a dívida privada fique com os privados. O grande erro de George Papandreou foi não ter feito isso quando assumiu o governo em outubro de 2009. Quando se passam perdas privadas para o setor publico tem que perguntar às pessoas que vão pagar. Os setores financeiros têm a maior parte desses governos no bolso. Ninguém quer a democracia. Ninguém quer o que houve na Islândia. Papandreou estava fazendo algo que era necessário, mas mal feito.

O que a Grécia deveria ter feito?

O fez a Argentina em 2003: renegociar imediatamente com os mercados financeiros. Se eu vou a um banco e peço U$ 1 milhão para ir ao cassino e perco, a culpa é minha. Mas também do banco que emprestou dinheiro para uma coisa tão absurda. É assim o caso da Grécia. Os que emprestaram essa quantidade de dinheiro à Grécia são igualmente responsáveis por essa situação insustentável.

Na Grécia, até agora [segunda-feira, 7/11] não conseguiram chegar a um acordo sobre o primeiro-ministro, já que a escolha obvia --o ex-vice-presidente do Banco Central Europeu, Lucas Papademos-- está reivindicando muitas condições. De qualquer forma, concordaram com uma eleição geral em fevereiro, que não deve gerar um governo forte, pois nenhum partido deve ganhar a maioria.

A ameaça da França e da Alemanha contra o plebiscito não deixam a Grécia numa situação de pouca independência?

Sim. As condições que a Europa impôs à Grécia para o plano de resgate são uma forma de neocolonialismo. É cortar os gastos de educação, saúde, habitação --que paguem os que não têm responsabilidade pela crise. Houve um nível de brutalidade e de caráter antidemocrático muito forte. Alemanha e França pensam que têm o direito de decidir o que acontece na Grécia depois do resgate. A falta de democracia é absoluta.

A queda de Papandreou é uma vitória do mercado financeiro?

Sem dúvida. Isso que ele tinha feito, até poucos dias atrás, exatamente o que os mercados financeiros queriam. Hoje os mercados financeiros e as grandes corporações têm o poder de trocar governos, trocar primeiros-ministros. Isso é o fundamental da falta de democracia. Passado o drama [anúncio do plebiscito, queda de Papandreou] a atenção se volta para a Itália.

O caso grego é o pior?

O pior fantasma que há na Europa é a Itália. Nos próximos dois anos 600 bilhões de euros, quase U$ 1 trilhão, da dívida vencem e precisam ser renegociados. Qual será o preço? Não vejo de onde possa vir um governo forte, racional, capaz de adotar políticas fiscais que faça a situação sustentável. A menos que se tomem medidas muito drásticas. Uma das poucas soluções para a Itália seria que, de forma unilateral, transformasse sua dívida curta em dívida longa. Uma solução dolorosa.

A dívida total da Grécia é algo em torno de 350 bilhões de euros. E essa é a quantia que a Itália precisa renegociar todo ano. Ao menos a Itália não tem um déficit primário, como a Grécia, mas nas taxas de juros atuais --aproximadamente 7% na renegociação da dívida-- o país está entrando num esquema de Ponzi: precisam pegar dinheiro novo emprestado apenas para pagar o serviço da dívida existente.

Ou seja, precisam adicionar o serviço ao estoque da dívida. O problema central é que a dívida italiana, de quase 2 trilhões de euros, é cerca de duas vezes todo o fundo de resgate do euro. E a Espanha pode ser a próxima --embora a relação dívida/PIB seja apenas metade da italiana, o déficit do setor é de 9% do PIB e o desemprego chegou a 21%.

Veja a confusão. A maior dívida pública na União Europeia é a da Grécia, de 143% do PIB em 2010. Depois vem a Itália, com 120%. Bélgica, Portugal e Irlanda, com menos de 100%.

A Grécia deveria ter renegociado de forma unilateral?

No primeiro dia. Como fez a Argentina. Os bancos europeus estão numa situação precária não só pela situação da dívida pública, ativos da dívida grega espanhola italiana, mas porque tinham ativos de subprime dos EUA e outros ativos muito precários. Não há como subestimar a precariedade dos bancos europeus.

E os resgates?

Os governos europeus saíram comprando dívida grega, que é de curto prazo. Houve uma transferência da dívida do mercado financeiro para os governos europeus. Esses governos europeus fizeram pressão em alguns bancos para que eles também mantivessem a dívida grega. Se há um default forte grego alguns bancos europeus vão sofrer fortemente, principalmente alemães e franceses. Mas 100% desses bancos vão ser resgatados pelos governos de seus países. Não vão fazer outro Lehman, com grandes perdas privadas. A dívida pública européia vai aumentar mais com o resgate desses bancos.

Está previsto um corte de 50% na dívida grega. Mas hoje os bônus valem quanto?

No mercado secundário o bônus vale menos de 50%. Hoje em dia não há preço, está tudo no ar. Hoje não vale nada, até que as coisas se resolvam. Antes dessa negociação era mentira que valiam 100%. Baixar a 50% é reconhecer um fato que já existe. Foi uma negociação da Alemanha e da França com os bancos privados que têm a dívida grega.

Mas o grande problema é a dívida italiana. Os bancos alemães e franceses têm muita dívida italiana. Esses 50% é sobre o que vale a dívida grega, mas a maior parte dela está com os governos europeus e alguns bancos grandes que têm de alguma forma a garantia dos governos. Se algum banco entrar em dificuldade os governos vão resgatar esses bancos. Por isso não creio que vá haver um grande mercado secundário de dívida grega como houve na América Latina.

A China vai salvar a Europa?

China já tem U$ 600 bilhões de dívida europeia. A China também pode ter muitas perdas. Mas os governos querem que a China compre mais, mais dívida italiana e espanhola. O mais provável é que compre um pouco. A pressão sobre a china é muito forte nesse momento, porque eles têm uma quantidade enorme de US$ 3 trilhões de reserva. Podem comprar toda a dívida espanhola e toda a dívida italiana. O grande problema dessa dívida é que é de curto prazo.

Por que China faria isso?

Para a China não convém um desastre mundial; tem interesse em deixar as coisas pelo menos como estão agora. Ela tem U$ 600 bilhões de dívida europeia. Se a china comprar a divida haverá muito menos pressão para que ela faça uma valorização da sua moeda. Há também fatores políticos. O mais importante é que, se amanhã a China tomar Taiwan numa negociação e a transformar numa Hong Kong, não haverá um país do mundo que vai se atrever a levantar um dedo. É a questão política para a China: ter todo mundo dependendo dela de tal forma que ninguém reclame sobre direitos humanos, sobre a valorização da moeda, nem por sua política em relação a Taiwan.

A China está desacelerando?

O crescimento continua a taxas muito espetaculares. A China é a única coisa que funciona nesse mundo, com Índia e algo de Ásia. É o único motor que está empurrando a economia mundial. Se desacelerar, complica a situação. China e Índia têm um mercado interno fantástico. Se os mercados externos se desaceleram, eles podem olhar mais para o mercado interno. E a China tem uma situação de balanço de pagamentos muito positiva.

Qual sua avaliação sobre as medidas sobre câmbio e fluxo de capital tomadas pela Argentina?

A Argentina é um caso à parte, faz coisas diferentes em política econômica. No resto da América Latina, Brasil, Chile, Peru não houve mudanças significativas de política econômica; são neoliberais. Os juros do BC brasileiro são os mais altos do mundo; no câmbio, o real é o mais sobrevalorizado do mundo, segundo o Goldman Sachs. São políticas ortodoxas, como na grande parte da América Latina. O êxito tem se baseado no crescimento dos preços das commodities e na grande entrada de capital estrangeiro.

A situação desses dois fatores que têm empurrado o crescimento é bastante incerta. O preço das matérias-primas não tem motivo para seguir subindo na situação atual. E a entrada de capital pode mudar a todo o momento. Os governos se ajustaram a isso como se fosse uma situação permanente e não transitória. Fizeram ajuste pelo consumo, não por investimento. Se os termos de intercâmbio voltam a níveis normais ou a entrada de capital se reduzir, o ajuste que terá que fazer a América Latina vai ser bastante forte.

E a probabilidade de que isso aconteça é alta. O preço das matérias-primas está onde está metade por causa da China, da Índia etc. E a outra metade é pela grande especulação das commodities. Essa especulação pode perfeitamente terminar. Pode haver um ajuste muito forte e muito rápido. Estamos dependendo de dois estímulos muito instáveis. O problema é que América Latina se ajustou a isso. Se os termos de intercâmbio fosse os históricos, o déficit de conta-corrente do Brasil seria mais do dobro do que é agora.

Mas Brasil tem mercado interno grande, uma indústria. Mesmo assim o ajuste seria grande?

O mais importante que vai minorar o ajuste são as grandes reservas que tem o BC; é um grande colchão. Isso México, Peru e Chile não têm. Com sorte, o Brasil vai seguir. Com má-sorte vai desacelerar mais.

O Brasil deveria cortar mais os juros?

O que mais me perguntam quando viajo à Ásia é: o que estão pensando os brasileiros para ter a política monetária que têm? Para mim é uma situação de monetarismo do século 19. A única razão que existe é a inércia. O ponto das taxas de juros é sempre o mesmo: é muito fácil subi-las, mas muito difícil baixá-las, criou-se uma inércia. Como subiram no nível que subiram é muito difícil baixá-las para ter uma política monetária racional.

E as medidas argentinas?

Argentina é diferente na América Latina, tanto na política monetária quanto nos problemas que tem. Não que eu seja otimista, mas ao menos, uma coisa interessante na Argentina é que se está tomando medidas mais agressivas, mais pragmáticas, no sentido de uma política monetária expansiva, uma política fiscal expansiva, de uma regulação dos fundos de pensão e de outras partes do mercado financeiro. Pelo menos está fazendo algo.

Uma coisa que para mim me desespera é a passividade do resto da América Latina, de um pouco sentar-se e esperar para ver o que acontece. A Argentina tem uma política mais pró-ativa, não só reativa. Isso ao menos lhe dá uma possibilidade de seguir adiante. Não dá para subestimar os problemas da economia argentina.

Por quê?

A Argentina tem uma situação de balança de pagamentos muito mais complicada que o Brasil. Não só o balanço de pagamentos depende do preço alto das commodities, mas também as receitas públicas. O dia em que o preço da soja e de outros produtos importantes para a Argentina, como o trigo, voltar a seus níveis normais, o país não só ter um problema de balanço de pagamentos, mas também fiscal. No dia em que os preços do ferro e da soja voltarem a níveis normais, o Brasil terá um problema sério de balanço de pagamentos, mas não de contas públicas. Argentina terá os dois.

Mas as medidas são boas?

São muito melhores do que não fazer nada. Melhor do que a posição brasileira de usar só política monetária, deixar o câmbio flexível, deixar que os mercados ajeitem as coisas. Hoje em dia eles não são capazes de ajeitar nada. Portanto, fazer algo na direção certa é muito positivo. É difícil saber se essas medidas serão suficientes, ou ela terá que tomar medidas mais fortes.

O que o Brasil deveria fazer?

Sem dúvida não tem nenhum sentido o câmbio nem a taxa de juros. Essas duas variáveis não têm nenhum fundamento na realidade da economia brasileira nem de nenhuma perspectiva de teoria econômica ou de um ponto real. É basicamente deixar que os mercados financeiros internacionais determinem o tipo de câmbio brasileiro. É inaudito, pois o Brasil deveria estar defendendo a sua capacidade produtiva doméstica. Mas com esse câmbio e com essa taxa de juros, estão destruindo a indústria manufatureira brasileira.

Estamos vivendo uma situação em que os países, incluindo China e Índia, deverão cuidar mais de seus mercados domésticos como motor de crescimento. Nessa situação é imperdoável o que o Brasil fez com sua indústria manufatureira. Em 1980, o valor da produção manufatureira brasileira em dólares era igual que a soma da China, Índia, Coreia, Malásia e Tailândia. Hoje é 10% dessa soma.

Isso é vandalismo econômico. O Brasil tinha uma capacidade manufatureira que o colocava numa situação muito favorável para aproveitar a globalização com uma força industrializadora interna. E, por sua política monetária, cambial, de taxa de juros, e abandono da política industrial fez exatamente o contrário. Fez com que a indústria brasileira como percentagem do PIB caísse à metade do que era em 1980.

Custa muito construir e é muito fácil destruir. Ter construído uma indústria manufatureira como tinha o Brasil em 1980. Tinha os seus problemas, mas eram muito menores que os que tinham a indústria manufatureira chinesa ou hindu. Esses países conseguiram uma industrialização sem precedentes. O argumento de que isso aconteceu porque os salários são menores na Índia e China do que no Brasil não tem sentido.

Porque o que importa do ponto de vista produtivo é o custo laboral por unidade de produto. Ainda que o salário brasileiro fosse o dobro do chinês, a produtividade brasileira era três vezes a chinesa. Era mais barato produzir no Brasil. O custo unitário da produção manufatureira brasileira nos anos 1980 era menor que o chinês. Porque o diferencial de produtividade era maior que o diferencial de salário.

O Brasil tinha uma indústria muito poderosa, uma situação de baixos custos produtivos, numa situação ótima pra aproveitar a globalização e transformar-se num centro industrial muito forte, especialmente no processamento de matérias primas. E, em lugar disso, abandonou sua indústria manufatureira à sorte dos mercados, com esse tipo de câmbio, taxas de juros. Os países asiáticos, partindo de uma situação muito pior do que a brasileira, o superaram.

Daqui para adiante, os mercados domésticos vão ter um papel mais importante para o crescimento, mais do que tiveram nos últimos 20, 30 anos. Isso vai custar caro ao Brasil. Como há setores dinâmicos na economia brasileira, há pelo menos uma base para reconstruir a indústria. Mas para isso precisa mexer no câmbio, na política industrial, uma taxa de juros. É necessário fazer mais o que Luciano Coutinho está tentando fazer no BNDES, e não o que o BC está fazendo. É preciso um projeto nacional.

A verdadeira crise

Por Vladimir Safatle, da Folha de São Paulo

E se, para além da crise econômica, política e ambiental que parece atualmente ser um fantasma a assombrar as sociedades capitalistas, outra crise estivesse à espreita?

Uma crise ainda mais brutal, dotada da força de abalar os fundamentos da normatividade existente. Lembremos como Max Weber mostrou que o advento do capitalismo trazia, necessariamente, a constituição de uma forma de vida marcada por um modo específico de relação aos desejos e ao trabalho.

Tal forma de vida, cuja face mais visível era a ética protestante do trabalho, baseava-se em um modo de articular autonomia como autogoverno, unidade coerente das condutas e da liberdade como capacidade de afastar-se dos impulsos naturais. Ou seja, ela trazia no seu bojo a criação da noção moderna de indivíduo.

Mas, e se estivéssemos hoje às voltas com uma profunda crise psicológica advinda do colapso dessa noção tão central para as sociedades capitalistas modernas?

Uma crise psicológica significa aumento insuportável do sofrimento psíquico devido à desestruturação de nossas categorias de ação e de orientação do desejo.

O sociólogo Alain Ehrenberg havia cunhado uma articulação consistente entre a atual epidemia de depressão e um certo "cansaço de ser si mesmo".

Por sua vez, boa parte dos transtornos psíquicos mais comuns (como os transtornos de personalidade narcísica e de personalidade borderline) são, na verdade, as marcas da impossibilidade dos limites da personalidade individual darem conta de nossas expectativas de experiência.

É possível que, longe de serem meros desvios patológicos, estes sejam alguns exemplos de uma crise em nossos modelos de conduta que crescerá cada vez mais.

Conhecemos um momento histórico no qual uma crise psicológica dessa natureza ocorreu. Momento marcado pela retomada do ceticismo e de um desespero tão bem retratado nos quadros do pintor Hieronymus Bosch.

Ele só foi superado por processos históricos, fundamentais para o aparecimento da individualidade moderna, nomeados, não por acaso, de Renascimento e de Reforma.

Tais palavras nos lembram que algo estava irremediavelmente morto e desgastado. Algo precisava renascer e ser reformado.

Talvez estejamos entrando em uma outra longa era de crise psicológica onde veremos nossos ideais de individualidade e de identidade morrerem ou, ao menos, algo fundamental de tais ideais morrer.

O problema é que, algumas vezes, a morte dura muito tempo. Algumas vezes, precisamos de acontecimentos que ocorrem duas vezes para, enfim, terminarmos de morrer.

VLADIMIR SAFATLE é filósofo, professor da USP e escreve às terças-feiras nesta coluna (Folha de São Paulo)